Então é Natal… para quem?
Para quem consegue chamar alívio de paz. Para quem está longe dos conflitos armados e tem alguma garantia de um amanhã
A Europa entrou no período de festas de fim de ano tentando ao máximo se aproximar de um ideal de “normalidade”. Na Alemanha, essa normalidade ficou atrelada a uma lembrança recente: Magdeburgo. Em 20 de dezembro de 2024, um carro atravessou um mercado de Natal, matou seis pessoas e feriu mais de 300. Esse evento não ficou no passado e acabou moldando o modo como se viveu o fim de ano de 2025.
Depois de Magdeburgo, muitas cidades reforçaram a segurança de forma visível. Quem foi aos mercados de Natal sentiu que este ano seria diferente: barreiras nas ruas, controle de entrada, vigilância, equipes maiores, custo extra. E o custo pesou a ponto de ameaçar o próprio evento. A Reuters aponta que os gastos de segurança em mercados e eventos públicos na Alemanha subiram, em média, 44% nos últimos três anos, e alguns eventos foram reduzidos ou cancelados em cidades menores.
Essa mesma Europa que hoje tem receio de celebrar as festividades já viveu um Natal com trégua em plena guerra, ainda que de forma bastante breve. Entre 24 e 25 de dezembro de 1914, em trechos da Frente Ocidental na Bélgica, sobretudo nos arredores de Ypres, na região de Flandres Ocidental, e também mais ao sul, perto de Ploegsteert, a poucos quilômetros da fronteira com a França, houve cessar-fogo informal, encontro entre soldados e episódios que ficaram conhecidos como a Trégua de Natal. Não foi acordo entre governos, não foi geral, e acabou rápido. E não foi “milagre”: aconteceu porque homens exaustos estavam a poucos metros uns dos outros nas trincheiras, partilhavam códigos culturais do Natal e, num nível bem prático, precisavam recolher e enterrar mortos. Depois, a guerra continuou.
Mais de cem anos depois desse acontecimento a sensação é de alívio. Alívio porque nada aconteceu “aqui”. E é justamente aí que o Natal fica moralmente desconfortável, pois fora do perímetro europeu das grandes potências econômicas, o mundo não entra em recesso. A Ucrânia continua em guerra. E em partes da África a violência continua sem pausa, do Sudão à República Democrática do Congo, passando pelo Sahel. E a Palestina, no imaginário cristão, o lugar onde o Natal começa, vive o oposto do que a festa promete. Bombas ainda estão matando palestinos em plena a trégua.
No Brasil, o calendário também não suspende a violência cotidiana. E 2025 não virou exceção só porque é Natal: entre janeiro e abril, a base do Ministério da Justiça registrou 11.886 mortes violentas (homicídio, feminicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de morte), algo como 99 por dia. E, no primeiro semestre, foram 718 feminicídios, perto de quatro mulheres mortas por dia por razões de gênero. E aqui entra o contraste cruel do próprio Natal: Maria, na narrativa cristã, teve acolhimento e proteção para seguir viva, enquanto tantas mulheres reais seguem sem rede de apoio e sem expectativas de uma vida melhor. O Natal não interrompe feminicídio, bala perdida, facção, operação, luto. E não é só guerra declarada que mata.
Então é Natal… para quem? Para quem consegue chamar alívio de paz. Para quem está longe dos conflitos armados e tem alguma garantia de um amanhã. Para o resto, Natal é só uma data atravessando guerra, ou atravessando violência diária, sem trégua nenhuma.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




