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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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Feliz Natal: entre a luz ancestral e o caos contemporâneo

O Natal sobrevive porque toca um ponto estrutural da experiência humana

Feliz Natal: entre a luz ancestral e o caos contemporâneo (Foto: Reuters)

Todos os anos, no fim de dezembro, algo retorna - ainda que fantasiado de consumo, ansiedade e obrigação afetiva. Chamamos de Natal - durante anos comemorei chamando-o de Nateu (o Natal ateu, onde a festa é sinônimo de descanso e comida boa). Mas o que se repete ali não é apenas uma data cristã, nem uma festividade comercial: é um ritual humano arcaico, anterior às igrejas, aos impérios e às moralidades que tentaram domesticá-lo.

O Natal sobrevive porque toca um ponto estrutural da experiência humana: o medo da noite longa e a esperança da volta da luz.

Antes de Cristo, antes de Roma, antes mesmo das religiões organizadas, povos do período neolítico já observavam o céu. Percebiam que, no auge do inverno do hemisfério norte, o Sol parecia enfraquecer, os dias encurtavam, a vida rareava. Até que, num determinado momento, o ciclo se invertia: o Sol "parava de morrer" e voltava a crescer. Esse instante - o solstício de inverno - foi vivido como renascimento, vitória simbólica da luz sobre a escuridão, promessa de continuidade da vida.

Esse núcleo ancestral atravessa culturas distintas porque responde a uma angústia comum: a de que a vida possa não voltar ou ainda mais forte, de que ela tenha um fim!

Em Kemet, o Egito antigo, o Sol não era uma metáfora distante, era fundamento ontológico da vida. Ao trazer isso para mais perto de nós, penso em Juramidam - a força da floresta - nas culturas que zelam pela ayahuasca, onde a luz, a cura e a ordem do mundo também não são abstrações, mas experiências vividas no corpo, no rito e na coletividade.

Rá - depois Amon-Rá - renascia todos os dias e, simbolicamente, também a cada ciclo anual. Essa certeza de que a luz retorna, de que a ordem pode ser restaurada após o caos, organizava não apenas a espiritualidade, mas a ética, a política e a medicina. O mundo só permanecia habitável quando estava em consonância com Ma'at: equilíbrio, justiça e continuidade da vida. Aliás, vale explicar que na cosmologia do Egito Antigo, Maat e Isfet constituem conceitos fundamentais e opostos. Maat representa a ordem cósmica, a verdade, a justiça e o equilíbrio que sustentam tanto o universo quanto a vida social; não é apenas um princípio moral, mas uma prática cotidiana que articula ética, política e natureza (Assmann, 1990; Hornung, 1992). Em contraste, Isfet designa o caos, a injustiça, a mentira e a desordem - tudo aquilo que ameaça a harmonia do mundo e rompe os vínculos entre humanos, deuses e sociedade. Enquanto Maat exige ação contínua para manter o equilíbrio, Isfet não é um acidente, mas uma força sempre presente que emerge quando a ordem é negada ou corrompida (Assmann, 2001).

Essa lógica solar não ficou restrita à África. Ela reaparece na Mesopotâmia (Shamash), entre povos indo-europeus, celtas e nórdicos (Yule). Não se trata de cópia, mas de convergência antropológica: diferentes sociedades encontraram no Sol a imagem mais potente da vida que insiste.

Quando o cristianismo escolhe o 25 de dezembro como data do nascimento de Jesus - sem respaldo histórico - ele não cria o Natal. Ele recobre esse legado pagão com uma nova narrativa: Cristo como "luz do mundo". Uma estratégia política e simbólica eficaz, porque não rompe com o inconsciente coletivo - apenas o reinterpreta.

Por isso o Natal atravessa séculos, mesmo quando a fé esvazia. Mesmo entre pessoas não cristãs. A árvore que insiste verde no inverno, as luzes que rasgam a noite, o fogo, as velas, a troca de presentes, a mesa compartilhada: tudo isso são restos vivos de rituais pagãos de abundância e pacto comunitário. Gestos que dizem, sem palavras: não estamos sós; vamos atravessar juntos!

O Papai Noel, figura tantas vezes ridicularizada ou hiperexplorada, também nasce desse caldo simbólico. Ele mistura São Nicolau, mitologias do inverno e arquétipos solares: o velho sábio, barbado, portador de dádivas após a travessia da noite escura. Uma imagem de cuidado coletivo num tempo historicamente marcado pela escassez.

Mas se o Natal é celebração da continuidade da vida, por que ele também produz tanto sofrimento?

Aqui entra o paradoxo contemporâneo - e psicanalítico. O mesmo ritual que convoca o laço expõe suas fraturas. Famílias que não se sustentam, afetos interditados, corpos dissidentes expulsos da mesa, violências silenciadas sob o verniz da harmonia obrigatória. O que deveria ser pacto vira cobrança. O que era rito vira performance. O que deveria ser vida, vira show por likes!

Para pessoas trans, pobres, racializadas, dissidentes, o Natal frequentemente não é abrigo - é prova. Prova de pertencimento, de adequação, de tolerância condicional. O culto à luz, sequestrado pela moral normativa, pode se transformar em mais uma noite longa.

Talvez por isso seja urgente descolonizar o Natal. Retirá-lo do moralismo, do consumo compulsivo e da família idealizada, e devolvê-lo ao seu sentido mais antigo: celebrar que a vida resiste, mesmo quando tudo parece escuro. Nesse sentido, desejar "Feliz Natal" não precisa ser um gesto religioso. Pode ser - e talvez deva ser - um gesto ético e político: afirmar a continuidade da vida, o direito ao cuidado, à diferença e à permanência.

Porque, no fundo, o Natal não fala de um nascimento específico. Ele fala de algo muito mais radical: A decisão humana de acreditar que a luz volta!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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