O DNA do SUS inspira o NHS: diplomacia da Saúde pauta luta contra extrema direita e crise climática
Londres busca no Brasil caminho para renovar Atenção Primária, enquanto especialistas alertam para ameaças globais a direitos reprodutivos e à justiça social
Por Sara Wagner York — direto da 14ªABRASCO/Brasília-DF
O Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil está sendo reconhecido internacionalmente não apenas como um modelo de abrangência, mas como uma fonte crucial de aprendizado para sistemas de saúde consolidados, como o National Health Service (NHS) do Reino Unido.
Em um diálogo recente entre especialistas brasileiros e britânicos, o Brasil se destacou ao apresentar as lições de sua robusta Estratégia Saúde da Família (ESF), influenciando diretamente a concepção do novo plano decenal do sistema britânico.
A Voz do Brasil no Cenário Britânico
O pesquisador Alex Shankland, do Institute of Development Studies (IDS) da Universidade de Sussex, e professor visitante da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, detalhou como essa troca de conhecimentos foi orquestrada. Sua participação no Brasil foi a convite do Professor Luiz Facchini, coordenador da Rede de Atenção Primária à Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
A colaboração resultou em um evento em Londres que reuniu especialistas internacionais para debater o futuro da Atenção Primária à Saúde (APS) no NHS, um sistema que, segundo Shankland, parece ter se distanciado dos seus princípios fundamentais.
“Se você olhar o plano decenal do NHS, ele é um xerox da Estratégia Saúde da Família do SUS,” afirmou Shankland, destacando o reconhecimento da abordagem brasileira como o caminho mais eficaz para reestruturar a APS -Atencao Primaria em Saúde.
O esforço foi motivado por um questionamento central levantado pela pesquisadora Andrea Cornwell, do King’s College London: por que o Reino Unido não estava aprendendo com o chamado “SUS Global” em sua busca por renovar a APS. O Professor Facchini, ao lado de ex-ministras como Rocío Sáenz (Costa Rica) e Soledad Barría (Chile), levou a experiência de países que mantêm vivo o “espírito da atenção primária”.
Desafios Transnacionais: Ameaças Aos Direitos Humanos
A conversa entre os sistemas de saúde se aprofundou em questões de direitos humanos e políticas públicas sensíveis que apresento a seguir:
1. Direitos Reprodutivos Sob Ataque Financeiro
O NHS é reconhecido pela sua política de ponta em saúde sexual e reprodutiva e pelo acesso seguro ao aborto legal. Contudo, Shankland alertou para um grave risco de retrocesso.
O pesquisador apontou a importação de fundamentalismo religioso dos Estados Unidos, “com muito dinheiro investido pelos megadoadores da extrema-direita americana,” que está contaminando o discurso político britânico e colocando em xeque direitos consolidados.
“No momento que a Irlanda… está avançando no sentido de direitos reprodutivos, o risco é a Inglaterra recuar com a ascensão da extrema-direita. Não é para relaxar a vigilância.”
2. Inclusão e o Papel dos Movimentos Sociais
A discussão sobre a inclusão demonstrou que a lei é apenas o ponto de partida. Embora o Reino Unido conte com o Equalities Act (Lei da Igualdade), uma legislação abrangente que visa proteger grupos contra a discriminação, o pesquisador Alex Shankland enfatizou que o arcabouço legal, por si só, é insuficiente para promover a mudança.
A verdadeira transformação reside na ação da sociedade civil:
- Pessoas com Deficiência e o Ajuste Razoável: Shankland destacou a força do movimento de pessoas com deficiência no Reino Unido, que não se contenta apenas com a existência da lei. Esse movimento utiliza a ação direta para expor a discriminação e exercer pressão sobre as instituições. O objetivo é forçá-las a cumprir o conceito legal de Reasonable Adjustment (Ajuste Razoável), que exige que as organizações façam modificações sensatas para evitar a desvantagem de pessoas com deficiência. Essa vigilância e pressão constante tornam o movimento um “grande exemplo” para todas as lutas por justiça social.
- Direitos Trans e o Racha na Esquerda: No contexto das disputas políticas contemporâneas, a ascensão do movimento Gender Critical foi abordada, sendo notoriamente exemplificado pela autora J.K. Rowling. Este movimento tem gerado tensões e “grandes estragos” na esquerda política britânica, desviando o foco e a energia de outras pautas sociais. O debate ressaltou a importância da defesa constante e intransigente dos direitos da comunidade trans, mostrando que as pautas de saúde e inclusão estão intrinsecamente ligadas às guerras culturais e à política.
O Fator Clima: Confiança e Participação na Adaptação
O tema da emergência climática demonstra ser inseparável da saúde pública. O Professor Shankland detalhou um trabalho específico realizado em parceria com a Abrasco, o Ministério da Saúde do Brasil e a OMS/OPAS, crucial para o Plano de Ação de Belém (proposto na COP30).
O argumento central do relatório é que a adaptação eficaz do sistema de saúde às mudanças climáticas depende de uma maior e melhor participação social.
“O tema de nosso relatório foi participação social, saúde e clima. [A OMS] tem tratado [a adaptação] como uma questão técnica, quando na verdade trata-se de uma questão política,” explicou Shankland.
Em um mundo polarizado, a construção da confiança é vital. Nesse contexto, o SUS é o modelo insuperável:
- Governança Participativa: O sistema brasileiro possui um grau de escala e institucionalização da participação social, via Conselhos e Conferências de Saúde, que é ímpar no mundo.
- Resiliência: O relatório destacou exemplos brasileiros, como projetos de saúde indígena na Amazônia e a luta do movimento negro (que levou à Política Nacional de Saúde Quilombola), como provas de que a tensão produtiva entre movimentos sociais e o governo é a chave para sistemas de saúde mais robustos, legítimos e capazes de enfrentar as ameaças globais.
A mensagem final que emerge da análise do Professor Alex Shankland, após sua participação no maior evento de saúde coletiva do Brasil, é inequívoca: a resiliência e a capacidade de adaptação de sistemas de saúde, do SUS ao NHS, estão intrinsecamente ligadas à vontade política e à força da sociedade civil na defesa de uma agenda de saúde integral e justa.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




