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Leonardo Stoppa

Colunista do 247 e apresentador do programa Leo ao Quadrado, da TV 247

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Feminicídio como capital político: quando a tragédia vira método

A instrumentalização do feminicídio por setores da esquerda desvia o foco das causas estruturais da violência e aprofunda a barbárie que diz combater

Brasília (DF) - 07/12/2025 - O Levante Mulheres Vivas realiza ato na área central de Brasília para denunciar o feminicídio e todas formas de violência contra mulheres (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O feminicídio é uma tragédia real, brutal e cotidiana. Não há relativização possível. Mas é justamente por isso que ele não pode ser transformado em ativo eleitoral, em mercadoria discursiva, nem em pauta de gestão simbólica do horror. Quando isso acontece, algo se rompe no próprio campo progressista.

Parte da esquerda brasileira — especialmente a vertente identitária institucionalizada — passou a viver politicamente do feminicídio. Precisa dele alto, constante, crescente. Precisa do número. Precisa da comoção. Precisa da narrativa permanente de guerra entre homens e mulheres. E isso não é um acidente. É método.

A lógica é perversa: cria-se um arcabouço legal e discursivo que não resolve o conflito, não atua na prevenção real, não estrutura mediação social, não constrói proteção material efetiva. Ao contrário: produz humilhação, desagregação familiar, perda de identidade e isolamento social. Tudo isso em um país sem rede de saúde mental, sem política de mediação de conflitos, sem acolhimento psicológico gratuito e sem acompanhamento contínuo.

O resultado é explosivo.

O feminicídio não acontece no momento racional. Ele não ocorre quando o agressor pondera pena, consequência ou custo jurídico. Ele ocorre no instante de colapso subjetivo. No momento de fúria, humilhação extrema, sensação de perda total. E é exatamente esse estado que certas políticas produzem deliberadamente.

O Estado age com força máxima onde não tem inteligência social. A polícia, o Judiciário e o aparato punitivo entram como espetáculo de autoridade, mas saem de cena no momento em que a mulher mais precisa. A chamada “medida protetiva” é, na prática, uma abstração burocrática: depende de acionamento posterior, de tempo de resposta, de presença do próprio Estado que já falhou antes.

O homem humilhado, sem acesso ao poder que o reprimiu, não se vinga do sistema. Não enfrenta o juiz. Não enfrenta o delegado. Não enfrenta a polícia. Ele descarrega sua fúria sobre a parte mais vulnerável: a mulher. É aí que a engrenagem da tragédia se fecha.

E os operadores políticos disso sabem. Sabem exatamente o que estão fazendo. Não é ingenuidade. Não é erro de cálculo. É cinismo institucional. Quanto mais casos, mais verbas. Quanto mais mortes, mais discursos. Quanto mais pânico moral, mais capital eleitoral.

Há ainda um elemento ignorado deliberadamente: a destruição identitária. O sujeito perde trabalho, patrimônio, vínculos, reconhecimento social. O “eu” entra em colapso. Quando a identidade acaba, a vida perde valor. A própria vida e a do outro passam a valer o mesmo: nada. É nesse terreno que surgem os feminicídios seguidos de suicídio. Um gesto final de alguém que já se percebe fora do mundo.

Marx não defendia emancipações parciais dentro do capitalismo. Ele defendia o fim do capitalismo. Defendia que a opressão da mulher está diretamente ligada ao trabalho não remunerado, à reprodução social gratuita e à exploração estrutural da família como unidade econômica. Sem superar isso, não há libertação real. Há apenas gestão da miséria.

O identitarismo substitui luta de classes por guerra cultural. Substitui transformação estrutural por punição simbólica. Substitui política por moralismo. E, no caminho, alimenta exatamente a violência que diz combater.

A esquerda que abandonou suas pautas-raiz passou a administrar cadáveres. A esquerda que trocou economia política por engenharia de ressentimento tornou-se cúmplice da barbárie.

Combater o feminicídio exige coragem para ir além do discurso fácil. Exige enfrentar o capitalismo, reconstruir políticas públicas de cuidado, mediação, saúde mental e proteção material real. Tudo o que o identitarismo se recusa a fazer.

Enquanto isso não acontecer, haverá quem lucre politicamente com o sangue. E isso, sim, é uma desgraça histórica.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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