Gaza após a resolução do Conselho de Segurança: tutela, ocupação, deslocamentos e separações
Apesar da pressão internacional e dos próprios Estados Unidos, a crise com a Palestina continua
A história registrará que a Resolução 2803, adotada na noite da última segunda-feira, ao endossar o plano de paz de Trump para Gaza, constitui uma das decisões mais perigosas, complexas e insidiosas já aprovadas pelo Conselho de Segurança. Ela lembra apenas da Resolução 687 (1991), adotada após a libertação do Kuwait, que impôs sanções ao Iraque, incluindo o desarmamento de armas de destruição em massa que nunca existiram. À época, foi apelidada de “a mãe de todas as resoluções”.
Em minha leitura da Resolução 2803, quero enfatizar a importância das necessidades imediatas de Gaza — particularmente um cessar-fogo, a entrega substancial de ajuda humanitária e a abertura de todas as passagens. No entanto, Israel não tem cumprido nenhum desses três aspectos desde o início do suposto cessar-fogo, em 10 de outubro. Os assassinatos não cessaram, a ajuda não atingiu o nível necessário e nem todas as passagens foram abertas. Não passa um dia sem ataques armados, destruição de edifícios e violência contra moradores de Gaza de todas as idades e origens.
Ainda assim, o mundo virou as costas para Gaza, presumindo que a guerra terminou, que os assassinatos cessaram, que a vida normal foi retomada e que as filas de famintos desapareceram. Tudo isso é mentira, mas o mundo hipócrita tenta aliviar a própria consciência — cúmplice desta guerra de extermínio — convencendo-se de que Gaza encontra-se em fase de recuperação. Contudo, a verdade, como descreveu o UNICEF, aparece nas palavras de seu porta-voz, Ricardo Pérez, ao comentar a resolução do Conselho de Segurança: “Precisamos ver mais corredores humanitários abertos. Precisamos ver maiores quantidades de ajuda chegando, mais caminhões, mais corredores e mais acesso”.
A resolução deve ser lida em detalhes, especialmente o ponto sete. Trata os palestinos como menores incapazes de autogoverno. A Autoridade Palestina não tem qualquer papel até que seja “reformada” e “reabilitada”, e a polícia palestina só poderá atuar auxiliando a força internacional depois que seus membros forem treinados e sua lealdade, verificada. Não sabemos quando a Autoridade será reformada, nem quando a polícia concluirá seu treinamento.
A resolução estabelece um conselho de tutela — falsamente denominado “conselho de paz” — sob cuja autoridade um governo de transição deve operar para implementar o plano de Trump e sob cuja autoridade atuarão as forças de estabilização responsáveis pela segurança. Esse conselho teria personalidade jurídica protegida pelo direito internacional, o que significa que ninguém poderia interferir em seu trabalho ou responsabilizá-lo caso cometesse crimes.
Como afirmou o embaixador russo, Vasily Nebenzya, no Conselho de Segurança: “A resolução permite que o Conselho de Paz e a força internacional de estabilização atuem com total independência, sem levar em consideração a posição ou a opinião da Autoridade Palestina, o que poderia consolidar a separação da Faixa de Gaza da Cisjordânia.
Alcançar os objetivos que Israel não conseguiu atingir: as forças de segurança, operando em cooperação com o Egito e Israel, são responsáveis por desmantelar todas as redes de resistência, desarmá-las e destruir sua infraestrutura. É isso que a resolução estipula, para que ninguém duvide de sua seriedade: “A força internacional trabalhará com Israel e o Egito… juntamente com a polícia palestina, cujos membros já foram treinados e selecionados, para ajudar a garantir a segurança das áreas fronteiriças; e para estabilizar o ambiente de segurança em Gaza, garantindo a desmilitarização da Faixa de Gaza, incluindo a destruição e a prevenção da reconstrução de infraestrutura militar, terrorista e ofensiva na Faixa, bem como a remoção permanente de armas de serviço por grupos armados não estatais.”
Este é o verdadeiro objetivo: alcançar, por meios indiretos, aquilo que Israel não conseguiu atingir por meio da guerra, após dois anos de campanha de aniquilação. A resolução busca a derrota da resistência, seu desarmamento, a destruição de sua infraestrutura e o controle das fronteiras — tudo implementado por uma força internacional estabelecida por Israel em cooperação com os Estados Unidos.
E quanto à retirada israelense da Faixa? A resolução afirma que a retirada das Forças de Defesa de Israel (IDF) de Gaza só ocorrerá com base em critérios, parâmetros e prazos específicos, vinculados ao desarmamento, e acordados entre as IDF, a força internacional, os garantes e os Estados Unidos. Isso implica a manutenção de um cordão de segurança que permanecerá ativo até que Gaza esteja completamente livre de qualquer risco de ressurgimento de ameaças consideradas “terroristas”.
Mas quem determina se Gaza está “segura o suficiente” para a retirada das IDF, senão o próprio Israel? Mesmo que se retire, manterá um cordão de segurança. Em outras palavras, uma retirada completa de Gaza é um sonho distante: não depende de um cronograma ou de critérios objetivos, mas de uma avaliação estadunidense-israelense sobre o desaparecimento total de qualquer manifestação de ameaça à segurança — uma avaliação que jamais se concretizará.
Para Israel, o nascimento de uma criança é uma ameaça à segurança; o hasteamento da bandeira palestina é uma ameaça à segurança; o hino nacional é uma ameaça à segurança. Trata-se, portanto, de um acordo permanente que visa impedir que a Faixa de Gaza recupere qualquer capacidade de resistência à ocupação em curso, ao deslocamento forçado, à perseguição de combatentes e à reconstrução de suas estruturas — tudo sob o pretexto de que “a segurança ainda não foi alcançada” ou de que “o desmantelamento das redes de resistência permanece incompleto”.
Gaza está agora entrando em uma fase de tutela colonial; trata-se de uma nova Declaração Balfour, desta vez sob a forma de uma Declaração Balfour norte-americana, legitimada por selos internacionais, árabes e islâmicos.
O Conselho de Segurança abdica de seu papel
Um dos aspectos mais peculiares desta resolução é que ela pode ser a primeira na qual o próprio Conselho de Segurança renuncia à sua autoridade em favor de uma entidade estrangeira. As Nações Unidas não têm qualquer papel na formação da força de estabilização em Gaza, nenhum papel no monitoramento do cessar-fogo e nenhum papel na reconstrução. Até mesmo seu papel humanitário foi minimizado, transformando-se em apenas mais uma organização entre muitas outras colocadas em pé de igualdade — como a Cruz Vermelha, o Crescente Vermelho e diversas organizações parceiras.
Mas quem são essas organizações parceiras? Isso não abre caminho para a infiltração de entidades duvidosas, como a chamada “Fundação Humanitária de Gaza”, criada pelos Estados Unidos como uma armadilha para matar civis? E quem decide quais organizações parceiras serão aceitas ou rejeitadas?
Compreendo as posições de alguns países árabes e islâmicos que normalizaram relações com Israel, ou estão a caminho da normalização, e que por isso oferecem apoio incondicional ao plano de Trump. Mas como posso compreender a posição da Argélia, que votou a favor da resolução mesmo sabendo que ela está muito aquém dos direitos nacionais mínimos dos palestinos?
Ela estipulava o estabelecimento de um Estado palestino contíguo e independente?
Mencionava a suspensão da atividade de assentamentos e da violência dos colonos?
Concedia algum papel aos representantes legítimos do povo palestino e aos seus honrados líderes, comprometidos com o projeto nacional palestino?
Afirmava a unidade entre Gaza e Cisjordânia?
É verdade que o embaixador argelino reiterou falar em nome do Grupo Árabe e que alguns de seus membros participaram das reuniões em Sharm El-Sheikh, agarrando-se à popularidade de Trump para evitar constrangimentos perante seus próprios povos. Mas o embaixador estava obrigado a tecer elogios a Trump — o mesmo Trump que discursou no Knesset vangloriando-se das quantidades de armas fornecidas a Israel, armas com as quais Israel travou sua guerra de aniquilação?
Isso implica reconhecer que, sem o apoio estadunidense em forma de armamento, financiamento e poder de veto, Israel não teria conseguido prolongar a guerra por dois anos inteiros.
Por fim, essa decisão aliviou a pressão internacional sobre Israel e fez com que a grande maioria dos ativistas de solidariedade retornasse para casa. Ninguém parece lembrar do Tribunal Penal Internacional, do Tribunal Internacional de Justiça ou dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos na Faixa de Gaza. Israel começou a romper seu isolamento, por um lado, enquanto, por outro, expande sua agressão contra o Líbano e a Síria — e em breve retomará sua guerra contra o Irã.
Quanto ao que acontece na Cisjordânia e à liberação de colonos, a situação tende apenas a piorar agora que o exército, as forças de segurança e a classe política estão livres para consolidar a anexação do que resta da Cisjordânia. E a referência da decisão ao plano de paz de Trump de 2020 — o que foi chamado de “Acordo do Século” — teria sido mera coincidência?
Não depositamos nossas esperanças em países árabes, islâmicos ou europeus. Já os conhecemos a todos e chegamos à convicção de que o povo palestino é o único capaz de proteger sua existência, seus direitos e seu projeto nacional na Palestina.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




