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Heba Ayyad

Jornalista internacional e escritora palestina-brasileira

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Grande terremoto em Nova York: Gaza e Trump mudam o cenário

Vitória histórica de Zohran Mamdani provou que estavam errados todos aqueles que zombaram de sua campanha a prefeito

Zohran Mamdani (Foto: Shannon Stapletan/REUTERS)

O cargo de prefeito da cidade de Nova York é considerado o segundo mais desafiador dos Estados Unidos, perdendo apenas para a presidência. Há apenas três anos, seria impensável que um jovem imigrante muçulmano ocupasse essa posição; pareceria inimaginável — até mesmo insano.

Essa cidade, cujos prefeitos já foram judeus (como o mais recente, Bloomberg), negros (como o atual prefeito, Eric Adams) e brancos racistas (como Giuliani), já foi, em grande parte, fechada para muçulmanos, árabes e imigrantes. Quem se lembra do padre Khader Al-Yateem, o virtuoso monge e pastor da Igreja Luterana em Beit Sahour, perto de Belém — conhecido por sua gentileza, compostura e opiniões moderadas — que, no entanto, não conseguiu se eleger prefeito em 2017?

Como essa reviravolta política aconteceu?

Como um imigrante muçulmano nascido em Uganda, que viveu parte da vida na Índia, veio para os Estados Unidos com o pai, quando este conseguiu um contrato como professor na Universidade Columbia, obteve a cidadania estadunidense em 2018, foi eleito para a legislatura estadual e, posteriormente, candidatou-se a um cargo sensível na cidade das finanças, do mercado de ações e dos ricos — que abriga a maior comunidade judaica fora de Israel — e venceu a eleição?

A minha explicação lógica — e posso estar sendo parcial, pois há diversas possíveis — aponta para duas razões principais que se complementaram e levaram Zahran à prefeitura: Gaza e Trump.

Gaza e o Despertar da Consciência Humana

O que Gaza trouxe foi uma verdadeira revolução em escala global. Gaza inverteu os papéis, separando as pessoas entre aquelas que defendem o certo e as que defendem o errado; a justiça e a injustiça; a igualdade e a discriminação; o respeito aos direitos humanos e aqueles que fecham os olhos diante dessas violações horríveis. Separou também aqueles que tratam as crianças como um território sagrado e intocável daqueles que apoiam os assassinos em massa de crianças.

Gaza mudou o mundo, revelando os hipócritas, marginalizando os covardes e afundando as meias-medidas na lama. Abriu olhos e corações para a tragédia de um povo que sofre sob uma ocupação colonial de assentamento, de substituição e de limpeza étnica há quase um século.

Gaza transformou percepções, restaurando o verdadeiro significado da liberdade de pensamento, da liberdade de crença, da liberdade de opinião, da liberdade de reunião, da liberdade de escolha e da pureza de consciência. Aboliu a noção de discriminação racial, religiosa, étnica, financeira e política.

Gaza desencadeou uma onda de pessoas — especialmente jovens, homens e mulheres — em todo o mundo, que declararam com força, confiança e determinação o fim das invenções sionistas, do seu monopólio sobre o conceito de vitimização e da sua definição degradante de “antissemitismo” como “antijudaísmo por ser judeu” — uma definição que confunde críticas às políticas israelenses com ódio aos judeus, uma confusão que já não engana ninguém.

Os próprios judeus desmantelaram essa distorção absurda. A Flotilha da Liberdade a desmantelou; as Vozes Judaicas pela Paz a desmantelaram; os estudantes da Universidade Columbia a desmantelaram; e as manifestações com milhões de pessoas nas ruas das capitais mundiais a desmantelaram.

Gaza mudou o mundo. Os exemplos vindos de Gaza abalaram profundamente a humanidade.

Como alguém pode não se comover com os gritos de Hind Rajab?

Como alguém pode não se solidarizar com a doutora Alaa al-Najjar, ao ver seu marido e seus nove filhos caírem diante de seus olhos?

Como é possível que um ser humano decente não se indigne com a brutalidade do assassinato do jornalista Anas al-Sharif?

Como alguém com um mínimo de consciência pode permanecer indiferente ao sofrimento do doutor Hussam Abu Safieh, diretor do Hospital Kamal Adwan?

Como é possível que as pessoas deste mundo ignorem a declaração da diretora-executiva do UNICEF, Catherine Russell, ao discursar no Conselho de Segurança, afirmando:

Todos os dias, em Gaza, uma turma inteira de crianças — cerca de 28 crianças — é morta.

Como podem mentes fechadas permanecer impassíveis diante da destruição bárbara de universidades, hospitais, escolas, mesquitas e igrejas em Gaza?

Enquanto isso, o representante israelense Gilad Erdan rasga a Carta da ONU na Assembleia Geral, pede a renúncia do secretário-geral e, pior ainda, seu sucessor, Danny Danon, chama Francesca Albanese de “bruxa”.

Para eles, qualquer pessoa que se oponha a Israel e aos seus crimes é considerada antissemita — ou um judeu que se odeia. Isso se aplica a organizações internacionais, veículos de imprensa, autoridades globais, escritores, atores, cantores, cineastas e comentaristas. A era do domínio do AIPAC está ruindo. Novos candidatos têm declarado sua recusa em aceitar doações da organização e, caso seus nomes sejam associados ao apoio a Israel e às suas atrocidades, acabam derrotados — como aconteceu com os rivais de Mamdani.

Gaza e suas tragédias criaram uma opinião pública contrária à entidade, aos seus símbolos, aos seus apoiadores e aos seus porta-vozes estridentes no Ocidente — uma opinião pronta para punir qualquer um que repita essas mentiras. Assim, a geração mais jovem emergiu das sombras e foi às urnas para punir todos aqueles que ecoavam a narrativa israelense e para apoiar os corajosos que se opuseram à velha guarda decadente, votando em Zahran Mamdani.

Uma punição direta a Trump

A segunda razão para a vitória de Mamdani, em minha opinião, é o desejo popular avassalador, na cidade de Nova York e em outras partes do país, de punir Trump e seu populismo odioso. Ele não cumpriu nenhuma das promessas feitas durante sua campanha eleitoral. Pelo contrário, desenvolveu uma veia narcisista que alienou até mesmo seus apoiadores mais próximos. Puniu imediatamente qualquer um que ousasse discordar dele.

Esse narcisismo ficou ainda mais evidente em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro, quando afirmou: “Meus apoiadores adotaram o slogan ‘Trump está sempre certo’, e parece que eles estão certos.”

Considere a situação atual: a paralisação do governo, a dívida crescente, a economia em deterioração, as batidas noturnas do Serviço de Imigração e Alfândega (ICE) e as deportações forçadas. Some-se a isso suas ameaças contra o Afeganistão — de ocupar a Base Aérea de Bagram —, contra a Groenlândia, o Panamá e, mais recentemente, a Nigéria.

Trump também se envolveu em conflitos com o Irã e agora com a Venezuela, podendo em breve embarcar em uma perigosa tentativa de golpe. Quanto ao seu apoio a Israel, é indescritível. Seu discurso perante o Knesset foi profundamente ofensivo para qualquer pessoa que não apoie o regime israelense.

Trump se tornou um fardo até mesmo para o seu próprio partido. Todos que o apoiaram acabaram derrotados nas urnas, seja em Nova York, Nova Jersey ou Virgínia.

Aguardem as eleições de meio de mandato, em novembro de 2026, para testemunhar uma grande derrota do partido de Trump — um partido que considera os brancos superiores, mais importantes e mais valiosos do que todas as outras raças.

Os ataques de Trump contra imigrantes em diversas cidades e o envio de tropas da Guarda Nacional para várias localidades, incluindo Washington, Los Angeles e Portland, levaram sua própria base eleitoral — e até governadores estaduais — a se voltarem contra ele.

Essa vitória histórica, na noite de 4 de novembro, provou que estavam errados todos aqueles que zombaram de sua campanha e questionaram suas habilidades e falta de experiência. Apesar dos milhões de dólares gastos pelos ricos em propaganda agressiva e das tentativas de Trump de coagir os eleitores a apoiarem o candidato independente Andrew Cuomo, o povo da maior cidade dos Estados Unidos escolheu um imigrante muçulmano, socialista e democrata de 34 anos para ocupar o Gracie Palace (residência oficial do prefeito), com um forte mandato popular para tornar Nova York uma cidade mais habitável.

Com as políticas cada vez mais autoritárias de Trump, a enorme desigualdade econômica e o caos dentro do Partido Democrata, todo o país sentirá o terremoto político provocado por Mamdani. A mensagem central dessa campanha — união por uma vida melhor para a grande maioria dos trabalhadores, pequenos empresários, funcionários, profissionais de manutenção, motoristas e guias turísticos, em vez de uma vida mais luxuosa para os ricos e super-ricos — será sentida.

Mas a direita fascista, os racistas, os bilionários e o establishment não baixarão as armas. Em breve, analisaremos os inúmeros obstáculos que Mamdani enfrentará.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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