Medo de mulher
Combater a violência contra a mulher exige leis eficazes, políticas públicas e responsabilização penal, mas exige também enfrentar o medo masculino
Mesmo sendo amplamente reconhecida como subnotificada, a violência contra mulheres — incluindo o feminicídio — segue em crescimento. O dado, por si só, já seria alarmante. Torna-se ainda mais perturbador quando lembramos que vivemos numa época de visibilidade quase total. Câmeras públicas, celulares em mãos anônimas, registros domésticos e redes sociais transformaram o espaço privado em algo cada vez mais exposto. Ainda assim, note-se que a violência não recua.
Há um paradoxo que insiste em se repetir: quanto mais a sociedade vê, mais se revela aquilo que antes permanecia silenciado. A violência contra a mulher sempre existiu, mas durante séculos foi tratada como assunto doméstico, íntimo, invisível. Hoje, ela emerge com força, não apenas porque ocorre mais, mas porque aparece mais. O que se torna impossível ignorar é que a visibilidade, sozinha, não basta para conter o ato violento.
Uma leitura exclusivamente policial ou jurídica é insuficiente para compreender o fenômeno. É preciso olhar também para o que se passa no campo simbólico, subjetivo e inconsciente. Do ponto de vista psicanalítico, o aumento da violência contra mulheres está profundamente ligado às transformações no lugar feminino na sociedade contemporânea. As mulheres mudaram — e continuam mudando — de posição. Ocupam espaços de trabalho antes interditados, conquistam autonomia financeira, decidem sobre o próprio corpo, recusam relações abusivas e, talvez o mais importante, passam a se autorizar a existir fora de modelos que lhes foram impostos.
Essa mudança não é apenas social ou econômica; é subjetiva. Ela altera pactos antigos, desorganiza hierarquias e expõe fragilidades que antes se escondiam sob a aparência da ordem. Para muitos homens, especialmente aqueles cuja identidade foi construída sobre ideias rígidas de autoridade, controle e posse, o empoderamento feminino pode ser vivido inconscientemente como ameaça, perda ou humilhação. Não se trata de um medo consciente ou declarado, mas de uma angústia profunda diante da perda de um lugar que parecia garantido.
A psicanálise ensina que, quando o sujeito não consegue simbolizar a perda, quando não encontra palavras para elaborar o conflito, a angústia tende a se converter em ato. A violência surge, então, como resposta primitiva à frustração, como tentativa brutal de restaurar um poder que já não se sustenta simbolicamente. Não é coincidência que muitos episódios de agressão ocorram no momento em que a mulher decide sair, romper, denunciar, crescer profissionalmente ou simplesmente dizer não. Esses gestos, que socialmente representam autonomia e avanço civilizatório, podem ser vividos por alguns homens como feridas narcísicas intoleráveis.
O mundo digital intensifica esse cenário. A presença constante de câmeras e registros amplia o alcance da denúncia e rompe o silêncio histórico, mas também expõe conflitos que antes permaneciam restritos ao espaço privado. Para sujeitos já fragilizados em sua identidade, essa exposição pode funcionar como gatilho adicional. Ao mesmo tempo, ela cumpre um papel fundamental: revela que a violência não é exceção, mas sintoma de uma crise mais ampla nas formas tradicionais de relação entre os gêneros.
Nada disso justifica a violência. Ao contrário, ajuda a compreender por que punir não basta, se não houver também um trabalho cultural, simbólico e subjetivo. Combater a violência contra a mulher exige leis eficazes, políticas públicas e responsabilização penal, mas exige também enfrentar o medo masculino diante da autonomia feminina, desmontar fantasias de posse e revisar modelos de masculinidade baseados na dominação e no controle.
O empoderamento feminino não é a causa da violência. Ele é o que a torna visível. O que assusta não é a mulher forte, autônoma e livre, mas a fragilidade de um poder que sempre dependeu do silêncio, da submissão e do medo para se sustentar. O crescimento da violência revela menos sobre as mulheres e muito mais sobre a dificuldade de parte da sociedade em lidar com um mundo em que elas já não aceitam ocupar o lugar que lhes foi imposto.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



