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Renata Medeiros

Mestre em Ciência Política. Advogada

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Quando o passado tenta morder de novo

A investida do general da reserva Álvaro Pinheiro contra o historiador Francisco Carlos Teixeira é uma tentativa de silenciamento

Militares e o professor Chico Teixeira (Foto: ABr | Divulgação )

Há momentos em que o Brasil parece insistir em não enterrar seus monstros. A investida do general da reserva Álvaro Pinheiro contra o historiador Francisco Carlos Teixeira é um desses episódios que escancaram o quanto ainda estamos sujeitos às sombras de um autoritarismo mal resolvido. Nada ali tem a ver com “honra” ou “verdade histórica”. O que existe é o desconforto profundo que o conhecimento provoca em quem depende da névoa para sobreviver.

Quando um militar tenta cassar títulos, enquadrar um professor universitário e transformar pesquisa em crime, não estamos diante de um debate — estamos diante de uma tentativa de silenciamento. É a velha tática de quem teme a memória e tenta eliminar quem a estuda. Nada novo: só mais um capítulo da mesma história de intimidação que o Brasil teima em permitir.

E aqui é essencial dizer quem é o alvo desse ataque. Francisco Carlos Teixeira não é um “intelectual ocasional”. É autor e organizador de dezenas de obras — livros, coletâneas, dicionários críticos — incluindo o premiado Atlântico: A História de um Oceano, vencedor do Jabuti, o “Oscar” da literatura brasileira. Escreveu sobre guerra, cinema e guerra, impérios, agrária, ditadura. Produziu o tipo de conhecimento que deixa rastros — e que, por isso mesmo, incomoda. Há livros seus lidos e respeitados nas próprias instituições militares onde lecionou. Mirar alguém com essa trajetória não é busca pela verdade: é medo do pensamento que se recusa a ajoelhar.

O ataque segue o roteiro clássico: o fascismo — declarado ou disfarçado — nunca enfrenta ideias de igual para igual. Persegue quem as produz. Não suporta intelectuais porque intelectuais lembram aquilo que eles querem apagar. Por isso acusam Francisco Carlos Teixeira de “falsificar a história”: porque sabem que a história verdadeira não lhes pertence. A acusação é tão absurda que revela seu próprio desespero — o de quem tenta reescrever o passado para limpar a história que ajudou a escrever.

E é aqui que voltamos sempre ao mesmo ponto: a ditadura foi uma ditadura. Com censura, tortura, perseguição e morte. Isso não se revisa por decreto nem por ressentimento. O fato de um militar daquele período partir para o ataque contra um historiador mostra o buraco que deixamos aberto ao negar a este país uma verdadeira justiça de transição. O passado não passa quando ninguém o enfrenta.

A repetição também não é acidente: ameaças, intimidações, processos, tentativa de transformar crítica em crime. Quando o autoritarismo se sente acuado, volta-se imediatamente contra quem pensa. E quem pensa — especialmente quem pensa com profundidade histórica, como Francisco Carlos Teixeira — representa tudo o que eles temem: luz, contraste, memória.

O inconformismo, nesse caso, é quase uma obrigação. Não é admissível que um pesquisador com décadas dedicadas a iluminar nossos períodos mais escuros precise lidar com intimidações pessoais e acusações delirantes. Isso não é apenas um ataque contra ele; é um ataque contra o próprio direito de compreender o país em que vivemos. É o reflexo de um Brasil que ainda reage ao pensamento crítico como se fosse ameaça — e não patrimônio.

E há um ponto incômodo que não pode ser ignorado: a coragem de Francisco Carlos Teixeira desnuda a covardia dos seus acusadores. Ele não se amedronta, não recalcula a voz, não negocia sua autonomia intelectual. Ao contrário — transforma a tentativa de censura em combustível para ampliar o debate. E é exatamente isso que mais irrita quem vive à sombra da própria história.

Por isso, é preciso dizer sem meias-palavras: o ataque contra Francisco Carlos Teixeira é político, autoritário e pequeno. É movido pelo incômodo que o saber provoca em quem o rejeita. A sociedade precisa estar ao lado dele não apenas por solidariedade, mas por responsabilidade — porque defender o direito de pensar é defender a democracia que ainda estamos tentando construir.

No fim, esse episódio nos lembra de algo essencial: regimes autoritários sempre odiaram intelectuais porque intelectuais não obedecem. Pensar é o gesto mais insubmisso que existe. E a verdade, mesmo quando incomoda, sempre volta. Sempre. Ainda que alguns, desesperados, tentem exigir silêncio de quem dedica a vida inteira a contar a história que eles tentaram esconder.

Francisco Carlos Teixeira continua sendo o farol que muitos tentam apagar — e que, por isso mesmo, brilha ainda mais.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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