Mesmo 26 bilionários não conseguiram impedir: estaria o novo prefeito de Nova York abrindo uma onda progressista global?
Em vez de identitarismo vazio ou tecnocracia fria, surge uma nova esquerda ancorada na vida real: aluguéis, comida, transporte, creche, renda e igualdade
A eleição do socialista democrático Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova York provocou um abalo político que ultrapassa os limites dos Estados Unidos. A vitória, construída sobre uma plataforma radicalmente voltada à vida cotidiana — congelamento de aluguéis, transporte público gratuito e creches universais — reacendeu um debate sobre o futuro da esquerda no Ocidente e sobre a possibilidade de um novo ciclo de políticas redistributivas capazes de desafiar o consenso neoliberal.
Mamdani desmontou a lógica vazia de slogans identitários e recolocou o foco na sobrevivência material das maiorias: renda, moradia, transporte, comida e educação infantil. Seu discurso, centrado no combate à inflação e na busca por igualdade substantiva, encontrou eco não apenas entre jovens e trabalhadores americanos, mas também entre setores progressistas da Europa, da América Latina e de mercados periféricos que observam Nova York — símbolo do capitalismo global — como um laboratório político.
A ruptura: quando um socialista vence a capital simbólica do capitalismo
A ascensão do prefeito de 34 anos não pode ser explicada apenas por carisma ou ousadia programática. Mamdani construiu uma coalizão que reuniu sindicatos, voluntários comunitários e uma vasta rede de pequenos doadores. Organizou uma operação de rua raramente vista no país, batendo à porta de milhões de eleitores e produzindo a maior participação popular em uma eleição municipal nova-iorquina desde 1969.
O resultado foi histórico: Mamdani derrotou figuras tradicionais do establishment, levou a maior parte de Brooklyn e Queens, obteve 51% dos votos e tornou-se o primeiro prefeito muçulmano da cidade, além do mais jovem em décadas.
Mais importante: rompeu com a política municipal tradicional. Em vez de tecnocracia morna, apresentou propostas incisivas — congelamento de aluguel, mercearias públicas para baratear alimentos, impostos mais altos para o 1% mais rico e financiamento para creches universais. Ao estilo Trump, mas pela esquerda, agiu como líder de movimento, não como gestor burocrático. Afirmou que sua eleição era um mandato para transformações estruturais e não meros ajustes cosméticos.
Mas sua capacidade de executar mudanças profundas dependerá dos limites do cargo. Embora o prefeito controle um orçamento anual de mais de US$ 100 bilhões e tenha poder de nomeações e vetos, a legislação estadual, o Legislativo municipal, os tribunais e um complexo ecossistema de interesses privados impedirão qualquer transformação sem conflitos. Sua administração será imediatamente testada em embates com o governo estadual e com setores do empresariado.
A pergunta central permanece: será Mamdani um reformista pragmático ou um prefeito-militante empenhado em empurrar os limites institucionais?
Europa: euforia progressista, pânico conservador
O impacto internacional da vitória foi imediato. Na Europa, partidos de esquerda celebraram o triunfo como prova de que políticas ousadas — congelamento de aluguéis, transporte gratuito, taxação dos ultrarricos — permanecem populares mesmo em grandes centros urbanos. Para socialistas alemães e verdes britânicos, Mamdani encarna a esperança de que a política da solidariedade ainda pode vencer.
Na França, setores da esquerda enxergaram no prefeito nova-iorquino a confirmação de que só rupturas radicais podem deter o avanço da extrema direita. Figuras como Marine Tondelier classificaram sua vitória como um “vento de esperança”.
Do outro lado, a direita europeia reagiu com preocupação calculada. Líderes extremistas exploraram a origem muçulmana de Mamdani e seu alinhamento progressista para atiçar medos identitários, enquanto conservadores ridicularizaram suas propostas como “fantasias utópicas” e alertaram que seu modelo não seria aplicável ao contexto europeu. Críticos acusam o novo prefeito de ignorar riscos fiscais e de representar uma ameaça à “ordem cultural ocidental”.
Apesar do ruído ideológico, analistas do continente concordam que Nova York enfrenta o mesmo tripé de desafios que assombra cidades europeias: moradia inacessível, desigualdade crescente e pressões inflacionárias. Daí o fascínio: a vitória de Mamdani reacende discussões sobre a centralidade da “crise do custo de vida” — que ameaça o centro político e alimenta tanto a nova esquerda quanto a nova extrema direita.
América Latina: entusiasmo, advertências e instrumentalização política
Se fora dos EUA existe um lugar onde a eleição nova-iorquina foi tratada como evento geopolítico, esse lugar é a América Latina. Presidentes, partidos e veículos de imprensa repercutiram amplamente o acontecimento, algo raro para uma eleição municipal norte-americana.
A esquerda latino-americana viu no prefeito um símbolo poderoso: a prova de que políticas redistributivas e lideranças diversas podem triunfar no coração do capitalismo. Petro, Sheinbaum e outros líderes regionais saudaram a vitória como sinal de um novo ciclo progressista mundial.
Na imprensa progressista, Mamdani foi retratado como exemplo de que empatia e políticas de bem-estar podem derrotar o neoliberalismo. O Brasil 247 — mencionado no texto original — interpretou sua vitória como um indício da ascensão de um novo progressismo internacional e conectou suas propostas à agenda de redistribuição defendida por economistas ligados à Teoria Monetária Moderna (MMT), frequentemente debatida no campo progressista brasileiro.
Mas setores da própria esquerda mostraram cautela: lembraram que prefeitos latino-americanos também foram eleitos com agendas transformadoras e esbarraram em estruturas rígidas, austeridade fiscal e ataques do mercado financeiro. A lição: vitória eleitoral não garante viabilidade governamental.
Já a direita regional reagiu com hostilidade, instrumentalizando Mamdani para atacar governos e movimentos progressistas locais. Na Argentina e no Chile, conservadores o descreveram como “comunista” e “perigo fiscal”. No Brasil, parte da mídia liberal e conservadora utilizou sua plataforma para reforçar o discurso anti-Estado.
Para a América Latina, o que está em jogo não é Nova York em si, mas a crise dos próprios modelos econômicos nacionais — e a busca por alternativas.
O impacto global entre imigrantes, africanos e muçulmanos
Talvez nenhum grupo tenha se sentido tão representado quanto imigrantes e minorias religiosas, sobretudo africanos e muçulmanos. Em Uganda, a vitória foi celebrada como um triunfo simbólico de um “filho da diáspora” que venceu nos EUA sem renegar suas raízes. Em toda a África, Mamdani virou exemplo de mobilidade social e inspiração para jovens frustrados com sistemas políticos fechados.
No mundo muçulmano, sua vitória foi vista como um marco histórico: um prefeito abertamente pró-Palestina vencendo uma eleição monumental nos EUA é interpretado como resposta direta à islamofobia e ao racismo pós-11 de Setembro. Grupos conservadores em Israel reagiram com hostilidade, enquanto setores progressistas celebraram a quebra de estigmas.
Curiosamente, sua campanha não girou em torno de identidade religiosa ou étnica. Em vez disso, construiu uma aliança transversal — imigrantes, jovens, trabalhadores precarizados — unida por demandas materiais e por uma representação cultural legítima. Esse modelo vai além da política de identidades e cria uma nova lógica: justiça econômica combinada com pluralidade cultural.
Um experimento que o mundo observa
A vitória de Zohran Mamdani não inaugura uma revolução global, mas evidencia uma mutação profunda na política ocidental. Em vez de identitarismo vazio ou tecnocracia fria, surge uma nova esquerda ancorada na vida real: aluguéis, comida, transporte, creche, renda e igualdade.
Ainda é cedo para saber se o “experimento nova-iorquino” se tornará modelo ou exceção. Mas uma coisa já é incontestável: a eleição expôs a fadiga do neoliberalismo, a insatisfação estrutural das maiorias e a emergência de coalizões multiculturais de trabalhadores e imigrantes capazes de disputar poder nas metrópoles do século XXI.
Se Mamdani conseguirá cumprir sua agenda é outra história. Mas sua vitória já deslocou o debate global — e reacendeu a possibilidade de que a política volte a tratar das necessidades concretas das pessoas, e não apenas dos interesses de elites financeiras e das guerras culturais que alimentam a extrema direita.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




