Ninguém toca no general
Segundo o que se apurou, a Polícia Federal foi impedida de tocar nos generais
Há uma cena no imaginário brasileiro recente que se tornou quase folclórica, não fosse profundamente trágica em sua repetição: o bater à porta às seis da manhã. O onomatopeico “toc-toc” da Polícia Federal, o indefectível agente de óculos escuros e o camburão preto aguardando na calçada. Essa é a estética da justiça contemporânea, o braço visível do Estado alcançando aqueles que delinquem, independentemente do CEP ou da conta bancária. Mas, no Brasil, a estética é perversamente seletiva, e a geografia do cárcere desenha um mapa de privilégios que resiste até mesmo à condenação criminal máxima.
Ao lermos as manchetes desta semana somos confrontados com uma realidade que faria qualquer sociólogo corar da mais pura constatação de velhas teses sobre o estamento burocrático nacional. A prisão dos generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto, figuras centrais na arquitetura do golpismo que assombrou a nação, não seguiu o rito dos mortais. Não houve o “toc-toc” da PF, tampouco a imagem pedagógica da submissão à lei civil. Houve uma negociação, uma “entente cordiale” entre o Supremo Tribunal Federal e o Alto Comando do Exército para garantir que a detenção não ferisse o sagrado “pudor militar”.
Segundo o que se apurou, a Polícia Federal foi impedida de tocar nos generais. A prisão foi executada por seus pares. Generais de quatro estrelas buscaram os condenados em suas residências, num cortejo que mais parecia uma homenagem de despedida do que o cumprimento de uma ordem judicial por crimes contra o Estado. É preciso digerir a simbologia disso, pois na semiótica do poder, a forma é quase sempre o conteúdo. Quando um cidadão comum comete um crime, o Estado envia sua força policial para subjugá-lo. O ato de prisão carrega uma mensagem de submissão do indivíduo à autoridade impessoal da lei. No caso de Heleno e Braga Netto, a mensagem foi invertida: é a lei que se curva à etiqueta da caserna para não “humilhar” aqueles que tentaram rasgar a Constituição.
A justificativa oficial é a necessidade de manutenção da estabilidade. O ministro Alexandre de Moraes, em seu pragmatismo maquiavélico — uso o termo em sua acepção técnica de realismo político —, teria aceitado o rito para evitar ruídos nos quartéis. “Melhor um general preso com honras do que solto conspirando”, diriam os filósofos realistas. Talvez haja mérito estratégico na decisão imediata, mas o custo institucional é a manutenção de uma casta intocável. Estamos em 2025, mas o cheiro de 1979 ainda impregna o país.
Naquela época, a Lei da Anistia garantiu que a transição fosse controlada pelos próprios militares. Eles ditaram os termos de sua saída do poder, blindando-se contra a justiça de transição que ocorreu em vizinhos como a Argentina. Agora, décadas depois, ao serem confrontados com a justiça por novas tentativas de ruptura democrática, eles ditam os termos de sua entrada na prisão. A recusa em permitir que um agente da Polícia Federal coloque as mãos em um oficial general é a prova de que as Forças Armadas ainda se veem como entidade acima da sociedade. Não se enxergam como servidores públicos fardados, mas como tutores da República. Para eles, ser preso por um “paisano” é uma inversão de valores, uma quebra de hierarquia que consideram superior à própria Constituição que conspiraram para violar.
Essa distinção é o cerne do problema. Ao aceitar que generais prendam generais, o Judiciário valida a tese de que o Exército é um tribunal de honra autônomo. Cria-se uma justiça de dois andares: a dos civis, suja, barulhenta, de algemas e celas superlotadas; e a dos militares, silenciosa, negociada entre cavalheiros. O argumento de que ser preso pela PF seria “humilhação” é de um cinismo atroz. Humilhação é o que sofre a mãe que tem a casa invadida por engano numa operação na favela. Humilhação é a fila do SUS na madrugada. Humilhação é o trabalhador espremido no transporte público precário. Ser preso por atentar contra a democracia não é humilhação; é consequência.
Ao tratar a prisão de golpistas como questão de “protocolo militar”, banalizamos o mal que perpetraram. Estamos falando de indivíduos que, segundo o inquérito do TSE e da PF, tramaram para impedir a posse e assassinar um presidente eleito, seu vice e um juiz da Suprema Corte, discutiram o uso da força contra civis, instrumentalizaram a máquina pública e insuflaram uma massa a depredar as sedes dos Três Poderes. É o crime político supremo, a tentativa de abolição violenta do Estado de Direito. E, no entanto, eles dormem não numa cela de presídio federal, mas em “unidades militares”.
O conforto material é secundário; o que fere a República é o isolamento simbólico. Embora o Superior Tribunal Militar tenha uma presidenta que impõe respeito, não creio que esses golpistas percam suas patentes. Eles estão entre os seus, continuarão recebendo continência de seus subordinados que lhes trazem as refeições. A prisão, para eles, não é punição; é um retiro forçado onde a hierarquia continua valendo. O contraste com Anderson Torres, o ex-ministro da Justiça, é gritante. Torres, um civil, conheceu o frio de uma cela comum dentro do sistema. Por que a farda, que deveria aumentar a responsabilidade moral perante o Estado, serve como escudo contra a realidade do sistema penal?
É tentador culpar apenas os militares por essa arrogância corporativista. O espírito de corpo é fundamental para a coesão em combate, mas torna-se um câncer quando aplicado à impunidade civil. Contudo, a culpa também recai a sociedade civil, que continua a tratar os militares com temor reverencial injustificado. Existe um medo latente, uma covardia institucionalizada de “melindrar” a caserna. Vivemos sob a chantagem implícita de que, se apertarmos demais, a onça acorda. Mas os fatos de 8 de janeiro mostraram que é uma onça de papel, velha, cansada, burocrática e dependente de verbas orçamentárias. O Exército não se levantou para salvar os generais de uma condenação; apenas negociou o mise-en-scène da prisão. Isso demonstra que há espaço para o poder civil se impor.
A negociação de Alexandre de Moraes pode ser vista como vitória tática: os generais estão presos. Mas a forma importa. Em uma democracia, a liturgia é a substância da legitimidade. Quando o Estado abre mão de exercer seu monopólio da força para “terceirizar” a prisão para os amigos do réu, admite uma fraqueza estrutural. A sociologia política ensina que instituições não reformadas tendem a reproduzir seus vícios ad infinitum. O Exército nunca passou por reforma profunda, nunca respondeu civilmente pelos crimes na ditadura, e agora, diante da tentativa de golpe, mantém suas prerrogativas de casta.
Diante desse quadro, é preciso propor caminhos concretos. O caminho é jurídico, legislativo e moral. É imperativo o fim da custódia em unidades militares para condenados por crimes contra o Estado Democrático de Direito. Atentar contra a Constituição não é “crime militar” no sentido de infração disciplinar. É crime contra a sociedade civil. Não há razão para que Heleno e Braga Netto não estejam na Papuda ou num Presídio Federal de Segurança Máxima. A transferência seria o marco definitivo da supremacia civil.
Imagine o impacto pedagógico de ver um general golpista vestindo uniforme de presidiário, submetendo-se às mesmas regras que qualquer outro criminoso condenado. Isso não é vingança; é igualdade republicana. É dizer que a patente não está acima da cidadania. Enquanto estiverem guardados em quartéis, sob tutela de antigos companheiros, a mensagem é que são “presos políticos” ou mártires, não criminosos que tentaram subverter a vontade popular. A proposta é simples: revogação dos dispositivos que garantem prisão especial em quartel para crimes contra a ordem democrática. Lugar de golpista é na cadeia!
Lembro de uma conversa que tive com um cientista político estrangeiro sobre a peculiaridade brasileira. Ele dizia que o Brasil é o único país onde o Exército se comporta como “Poder Moderador”, resquício monárquico que sobreviveu à República. Ao ver a deferência com que a Justiça tratou a prisão dos generais, percebo que ele estava certo. Talvez nossa democracia ainda não se sinta plenamente adulta, precisando desse “pai severo” fardado, a ponto de, mesmo quando temos que puni-lo, o fazermos com desculpas e mesuras.
A prisão de Braga Netto e Heleno é um avanço democrático se compararmos com a impunidade absoluta do passado. Mas o ritual revela que nossa transição democrática é obra inacabada, um prédio com fachada pintada e fundações expostas. Cortamos a cabeça da serpente golpista, mas permitimos que ela escolhesse o caixão e fosse carregada por seus fiéis em cortejo solene. Enquanto o “toc-toc” da Polícia Federal não bater igual para o general e para o civil, enquanto a algema for “humilhação” para uns e “procedimento padrão” para outros, nossa República continuará sendo uma democracia de farda, onde os civis governam apenas até onde a caserna permite. A questão não é jurídica, mas existencial: até quando aceitaremos viver num país onde a justiça tira o chapéu para passar pela guarda do quartel? A prisão aconteceu, mas a liberdade plena, aquela que nos iguala sob o mesmo teto da lei, ainda aguarda na antessala da história.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




