Ricardo Nêggo Tom avatar

Ricardo Nêggo Tom

Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência", "30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247, e colunista do Brasil 247

294 artigos

HOME > blog

O decreto da irresponsabilidade cultural brasileira

A cultura gospel brasileira é majoritariamente intolerante, preconceituosa, reacionária e imperialista, critica Ricardo Nêggo Tom

Lula sanciona lei que cria Dia Nacional da Música Gospel (Foto: Ricardo Stuckert)

Ao me deparar com uma notícia dando conta de que o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, aprovou o pagamento de R$ 5 milhões para financiar dois festivais evangélicos no mês de dezembro de 2025, logo me lembrei do decreto presidencial assinado por Lula que transforma a cultura gospel em patrimônio cultural brasileiro. A triste lembrança me faz refletir sobre mais um aceno feito pelo governo ao segmento evangélico, na ânsia de fortalecer o diálogo com os fiéis e diminuir a rejeição que a maioria deles ainda nutre pelo PT, pela esquerda e pelo próprio presidente Lula. Um aceno que inevitavelmente hierarquiza a religiosidade no país, dando mais poderes ao projeto de poder teocrático e fascista desejado pelas principais lideranças do agora patrimônio nacional.

Citei a grana que o prefeito de São Paulo liberou para dois eventos gospel na cidade, para chamar a atenção ao fato de que tais financiamentos agora serão considerados como “investimentos” em cultura, uma vez que estamos falando de um movimento que passa a ser considerado um patrimônio da sociedade. Alguém pode me alertar para o fato de que o Candomblé também foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, ao que eu respondo com uma pergunta: quantos eventos de matriz africana foram patrocinados com dinheiro público? E estamos falando de algo genuinamente brasileiro, ao contrário do gospel que é professado por aqui, que não passa de uma cultura intolerante, reacionária e imperialista, que começou a ser disseminada no país por missionários estadunidenses no final dos anos 1970.

O “Godspell” originário que vem dos Spirituals, o canto dos africanos escravizados nos EUA, era uma cultura de sobrevivência e resistência à dor. Uma ideia de apelo ao consolo divino diante das atrocidades sofridas pelos negros escravizados. Em sua tradução literal “Deus soletra”, está implícita a transmissão do evangelho de Cristo e sua mensagem de salvação e fé na qual creem os cristãos. Acontece que o canto dos escravizados africanos nos EUA, certamente não era direcionado apenas ao deus cristão. Até porque, Deus não tem religião e existem várias formas de louvar a sua existência. É preciso levar em conta também o fato de que inadvertidamente, os escravizados estariam pedindo socorro ao mesmo deus cultuado por seus escravizadores, o que do ponto de vista racional, invalidaria suas orações. Oprimidos e opressores não podem ser regidos pelo mesmo deus. Do contrário, esse deus estaria sendo injusto. Com os oprimidos, é claro.

O Gospel que agora temos como patrimônio cultural no país surge das entranhas do imperialismo estadunidense, como um movimento de oposição e contenção ao crescimento da Teologia da Libertação dentro da igreja católica, de onde se originou, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores. A gospel Teologia da Prosperidade chega para se contrapor a ideia de reforma agrária e de justiça social, pregando um evangelho onde todos podem prosperar financeiramente se forem fiéis a Deus e às suas leis. Algo visando desmobilizar o povo mais pobre da luta por igualdade, fazendo esse povo acreditar que os bens dos latifundiários são bênçãos divinas, e que os pobres de então, se convertendo ao “gospel” e aceitando “Jesus” como seu suficiente salvador, também poderiam possuir as mesmas terras, os mesmos bens e a mesma riqueza, através da fé e da fidelidade ao dízimo. Os 10% que os pobres pagam de imposto à igreja para continuarem pobres e excluídos, mas se sentindo ricos, abençoados e com pertencimento dentro de tal sistema.

Quando Lula decreta o Gospel como patrimônio cultural brasileiro, ele valida a decisão monocrática e inconstitucional do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, de construir um batistério religioso no meio de uma praça pública no bairro do Méier, zona norte da cidade, e com isso homenagear o autoproclamado bispo Edir Macedo, que iniciou a sua trajetória de empresário da fé exatamente neste local onde o batistério foi construído. Para enganar os mais desatentos, coube ao prefeito dizer que o espaço - que ainda conta com uma cascata de água e a escultura de uma Bíblia - foi construído em nome da liberdade religiosa e para a manifestação de todos os credos. Credo! Poderia ter contado outra cascata, né? Mas há quem acredite que todos esses acenos são necessários para dialogar com aqueles que não querem diálogo. É como se uma pessoa fosse perdidamente apaixonada por outra e não sendo correspondida em sua paixão, comece a oferecer presentes caros para a sua amada ou amado, acreditando que conquistará o seu amor e será feliz para sempre.

Uma prova de que o amor dos evangélicos não se conquista com acenos eleitoreiros, é o fato de que todos os grandes líderes do segmento que hoje se opõem feroz e mortalmente a Lula, já foram presenteados por ele no passado e fingiram amor eterno a cada presente recebido. Entre os presentes recebidos está a lei da liberdade religiosa, que permite que se abra uma empresa, digo, igreja, em cada esquina, onde a maioria delas orienta voto contra Lula e a demonização à esquerda. Tudo sem recolhimento de impostos e sem nenhuma exigência de credibilidade religiosa ou conhecimento político. Ainda teve o decreto que instituiu a “Marcha para Jesus”, que hoje é o principal palanque eleitoral da extrema-direita e o principal púlpito de pregação e promoção do cristofascimo no país, o dia do pastor e da pastora evangélicos e o dia da música gospel. E são presentes que não tem como tomar de volta, mesmo que o “amor” dos presenteados acabe.

Definir como patrimônio cultural de um país uma cultura onde os adeptos, em sua maioria, costumam invalidar e desrespeitar a existência de outras culturas religiosas e desnaturalizar a existência de seres humanos diferentes do seu padrão – como a população LGBT - atribuindo a estes um caráter diabólico, anticristão e inimigo da verdade que ela diz ser a única detentora, é dizer que o Brasil é um país culturalmente preconceituoso e fascista. Talvez até seja mesmo, e não sabemos admitir. E um ponto chave que faz cair por terra essa história de avivamento coletivo e de conversão espontânea, são as pesquisas que apontam que a população evangélica irá crescer tanto a ponto de se tornar a maior do país. Atribuir a previsões estatísticas o poder de conversão a Deus, é tão mentiroso quanto dizer que Malafaia foi escolhido por ele. Como prever um chamado espiritual? A explicação para o crescimento do segmento Gospel no país é simples: Capital de investimento.

Uma grana que vai se multiplicando graças a isenção de impostos concedida às empresas da fé, e que cada vez mais é investida na “conversão” de pessoas. Seja no financiamento de candidaturas evangélicas que irão legislar a favor da doutrina do segmento dentro dos parlamentos, seja na contratação de missionários para conquistar jovens ovelhas promovendo intervalos bíblicos em escolas e universidades, seja na construção de templos em localidades carentes onde o Estado se ausenta e acaba estabelecendo parcerias com igrejas, onde elas irão cumprir o papel que lhe caberia. No final das contas, quem abençoa o crescimento evangélico no país é o Estado. Jesus é apenas o fiador do contrato, aquele que vai pagar a conta quando algo der errado. Mas quem irá cobrar dele? Sabendo que o nome de Jesus não pode ser negativado no SPC, no SERASA e na sociedade, os vendilhões da fé compram a fé de milhares de pessoas no cartão black de Cristo. E, talvez, seja por isso que eles o chamam de salvador. 

Claúdio Castro, governador do Rio de Janeiro, decretou Jesus Cristo como guardião do Estado. Dias depois, organizou uma chacina com dezenas de mortos, moldando a subjetividade da população a crer que Jesus apoiou tal carnificina. Fátima Bezerra, petista e governadora do Rio Grande do Norte, assinou a lei que inclui a Bíblia como recurso didático e paradidático nas escolas, jurando que a intenção é garantir sempre a liberdade religiosa e o caráter facultativo da participação dos alunos. Será que a governadora está fazendo cumprir a lei 10.639, que obriga o ensino da história da África nas escolas? Por fim, recomendo a pesquisa do livro “Plano de Poder”, escrito por Edir Macedo, no qual ele diz que Deus tem um grande plano político para a nação brasileira. Como Deus deve ter revelado tal plano apenas para ele, digo, como ele deve ter atribuído a Deus um plano criado por ele mesmo, nos resta combater constitucionalmente esse projeto de poder que representa o apocalipse social brasileiro. 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados