O erro que se repete: a armadilha constitucional no relatório de Esperidião Amin sobre o "PL da Dosimetria"
Ambição de corrigir supostos excessos na execução penal não autoriza o Parlamento a legislar por destino ou a traçar regras que beneficiem destinatários certos
O relatório apresentado pelo senador Esperidião Amin ao PL 2.162/2023 — o chamado “PL da Dosimetria” — busca corrigir um problema evidente surgido na tramitação da proposta na Câmara dos Deputados: a ampliação indiscriminada de benefícios de dosimetria e execução penal a todos os condenados, sem qualquer filtro material ou contextual. No entanto, ao tentar sanar esse vício, o parecer acaba por incorrer em erro de natureza igualmente grave, apenas invertendo o polo da distorção constitucional.
Se antes o equívoco consistia em uma generalização excessiva — uma norma mais benéfica irradiada indistintamente para todo o sistema penal —, agora o erro assume feição oposta, mas não menos censurável: a atribuição de uma norma penal mais favorável a um grupamento político claramente identificável, delimitado por um evento histórico específico e por condenações já conhecidas. Em ambos os casos, rompe-se com o núcleo essencial da legalidade penal, que exige normas gerais, abstratas e impessoais.
A tentativa de “corrigir” o erro da Câmara, portanto, não restabelece a neutralidade do direito penal; apenas a substitui por um critério seletivo, politicamente orientado. O resultado é uma lei que deixa de ser regra para se tornar resposta legislativa a um fato determinado, com destinatários determináveis. Trata-se de uma mutação perigosa da função legislativa: o Parlamento abandona a produção de normas universais e passa a operar como instância corretiva de decisões judiciais concretas, o que a Constituição não autoriza.
O problema não é apenas de técnica legislativa, mas de princípio. O direito penal, por sua própria natureza, não comporta soluções ad hoc. Quando a dosimetria da pena é moldada para alcançar — ou excluir — determinados condenados em razão de sua identidade política ou do contexto simbólico do delito, viola-se frontalmente o princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal) e o princípio da impessoalidade da lei. A norma deixa de tratar cidadãos como sujeitos abstratos de direitos e deveres para tratá-los como alvos legislativos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é reiterada ao rechaçar leis de efeitos puramente concretos, ainda que travestidas de generalidade formal. A Corte tem advertido que o legislador não pode utilizar a forma legal para produzir resultados específicos, sob pena de converter a lei em instrumento de exceção. Normas com destinatários determináveis, ainda que redigidas em linguagem aparentemente abstrata, são materialmente inconstitucionais quando revelam intenção inequívoca de regular situações individualizadas.
Nesse sentido, o parecer de Esperidião Amin não supera o vício original do projeto: apenas o desloca. Se a versão da Câmara falhava por diluir a individualização da pena em benefício amplo e irrefletido, o relatório da CCJ falha por reconduzir a dosimetria ao campo da excepcionalidade política. Em ambos os cenários, o resultado é o mesmo: a corrosão da função jurisdicional e a instrumentalização do direito penal como ferramenta de acomodação institucional.
Há, ainda, uma consequência institucional relevante. Ao editar norma que, na prática, visa produzir efeitos sobre sentenças já proferidas e sobre um conjunto específico de condenados, o Legislativo invade a zona sensível da função jurisdicional. A individualização da pena é tarefa do juiz, não do Parlamento. O legislador pode — e deve — estabelecer critérios gerais; jamais resultados concretos. Quando o faz, rompe-se o equilíbrio entre os Poderes e fragiliza-se o próprio Estado de Direito.
Em termos democráticos, o custo é elevado. Leis penais percebidas como respostas políticas a eventos específicos minam a confiança pública no sistema jurídico e alimentam a percepção de que a legalidade é maleável conforme o peso político dos destinatários. O direito penal, que deveria ser o último reduto da racionalidade normativa, converte-se em arena de disputas simbólicas e compensações legislativas.
A conclusão é inevitável: ao tentar corrigir um erro, o relatório de Esperidião Amin acaba por reproduzir outro, de igual gravidade constitucional. A superação do equívoco da Câmara não poderia se dar por meio de uma norma seletiva, dirigida a um grupo político determinado. O único caminho constitucionalmente legítimo seria a formulação de regras gerais, abstratas e aplicáveis indistintamente, preservando-se a competência judicial para a individualização da pena.
Sem essa correção de rota, o “PL da Dosimetria” não representará avanço técnico algum, mas apenas a substituição de uma distorção por outra — igualmente incompatível com a Constituição, igualmente vulnerável ao controle de constitucionalidade e igualmente nociva à credibilidade do processo legislativo.
No plano prático, o relatório de Amin acrescenta outra fragilidade: critérios de percentuais e computação de pena que, segundo a exposição pública, alteram as margens da progressão de regime (por exemplo, percentuais fixados em 25% para primários em crimes com violência ou grave ameaça) e ajustam a contagem da pena em casos de concurso de crimes. Essas mudanças, combinadas com a delimitação política do alcance, transformam um ajuste técnico em instrumento político-jurídico — o que atrai não apenas crítica acadêmica, mas ações judiciais e pressões institucionais que aumentam a probabilidade de judicialização massiva da matéria.
Leis que aparentam ter sido desenhadas para produzir benefício a um grupo politicamente sensível corroem a confiança pública no parlamento. Mesmo quando articuladas sob linguagens técnicas, normas com destinatários identificáveis funcionam como exceção à regra republicana da igualdade. A consequência previsível é a multiplicação de contestações constitucionais, demandas cautelares e, eventualmente, arguições de inconstitucionalidade que transformarão o debate legislativo em terreno de litígio prolongado. Notícias e avisos públicos já indicam essa possibilidade — inclusive com declarações de que o Executivo poderia vetar a proposta caso aprovada em seus termos originais.
Enfim, a ambição de corrigir supostos excessos na execução penal não autoriza o Parlamento a legislar por destino ou a traçar regras que, na prática, beneficiem destinatários certos. Se o objetivo é aperfeiçoar a dosimetria e aperfeiçoar a execução penal, o caminho constitucionalmente legítimo passa por normas gerais, neutras e aplicáveis indistintamente — e por respeito absoluto à função judicante na individualização da pena. Qualquer desvio desse caminho abre a porta para a inconstitucionalidade e para a erosão da legitimidade do próprio processo legislativo.
O “PL da Dosimetria”, pelo jeito, será menos uma reforma técnica e mais um instrumento de exceção — e, como tal, destinado a naufragar no escrutínio constitucional.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




