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Gustavo Tapioca

Jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de "Meninos do Rio Vermelho", publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado.

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O grito de Ulysses, o golpe de 1964 e a prisão dos generais golpistas

Ulysses Guimarães sabia que a ditadura não acabava numa assinatura, mas num enfrentamento moral permanente

Ulysses Guimarães (Foto: Agência Brasil)

Na terça-feira, 22 de novembro de 2025, o Brasil atravessou o marco que faltava. Generais de quatro estrelas, almirantes e ministros de Estado começaram a cumprir longas penas de prisão por atentarem contra a democracia. Pela primeira vez na história, a farda descobriu que não é dona do país. A democracia — tantas vezes humilhada, chantageada e ameaçada — levantou-se e disse, como Ulysses em 1988: “Tenho nojo da ditadura.”

O ciclo iniciado com a violência armada de 1889 — quando o marechal Deodoro da Fonseca liderou um movimento militar que derrubou Dom Pedro II — aprofundado pela tortura de 1964 e ressuscitado pelo bolsonarismo, termina agora atrás das grades.

O mito que transformou covardia em projeto

Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos e três meses, caiu como sempre viveu: covarde, teatral, patético, tentando manipular uma tornozeleira cumprindo prisão domiciliar. Mas Bolsonaro jamais foi o cérebro. Ele foi o biombo — o boneco colorido colocado na frente de um projeto fardado e autoritário que, durante décadas, transitou livre pelos subterrâneos da República.

Caiu Jair Bolsonaro. Caíram Braga Netto, Almir Garnier, Augusto Heleno, Paulo Sérgio, Anderson Torres. Caiu o círculo militar que acreditou que o Brasil ainda era o latifúndio privado dos quartéis. E cai, sobretudo, o mito da farda como licença para destruir o Estado de Direito.

O 8 de janeiro nasceu em 1964

O golpe de 1964 ensinou, geração após geração, que as Forças Armadas eram “poder moderador”, “árbitro”, “reserva moral”, “última instância”. 

Mentira. Propaganda. Ideologia de caserna.

Essa mentira produziu 21 anos de ditadura, milhares de perseguidos, centenas de desaparecidos e torturados. Um país inteiro traumatizado. E essa mentira continuou viva porque o Brasil nunca puniu seus torturadores.

A sentença que recai agora sobre generais golpistas não é só sobre 2023. Ela é, sobretudo, o que o país não teve coragem de enfrentar em 1979, quando anistiou os torturadores. Um deles ídolo dos Bolsonaros — um dos mais sádicos torturadores da “safra” dos anos 1970 — exaltado em camisetas que homenageiam Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, no dizer cúmplice de Jair Bolsonaro.

A memória dos torturados exige este momento

O livro Brasil: Nunca Mais revelou ao país, com documentos da própria Justiça Militar, o inventário da barbárie: Choques elétricos, Pau-de-arara, Estupros, Execuções, Afogamentos, Desaparecimentos, Corpos nunca encontrados.

Foram mais de 700 processos — e nenhum torturador punido. A democracia pós-1985 deveu às vítimas a justiça que nunca veio. As prisões dos generais de 2025 não compensam a omissão. Mas finalmente deixam claro: quem conspira contra a democracia não terá o mesmo destino dos torturados — a porta da frente da história.

O pecado original que gerou o golpismo

A anistia que perdoou torturadores também perdoou a ideia de que militares podem tudo. Ela inoculou o vírus que renasceu sob Bolsonaro. Foi o pacto que permitiu que, em pleno século XXI, generais acreditassem poder derrubar um governo eleito com fake news, culto messiânico, sabotagem institucional e manifestações nos portões dos quartéis clamando por intervenção militar, com a baderna generalizada do 8 de janeiro.

A sentença da história é clara: se o Brasil tivesse julgado seus torturadores, nenhum general teria ousado conspirar em 2023. A impunidade é mãe do golpe. A punição é a única vacina.

O filho político do porão

Entre todos os condenados, Augusto Heleno tem um significado especial. Não é apenas um general. É o herdeiro direto da linha-dura. Formou-se politicamente como ajudante de ordens de Silvio Frota, o mais autoritário e golpista dos generais da ditadura.

De Frota, Heleno aprendeu o ódio à política civil, o desprezo pela democracia, a fantasia de tutela militar, o gosto pela conspiração. Entre 1974 e 1977, período em que Frota ocupou o Ministério do Exército, a ditadura assassinou alguns dos casos mais emblemáticos de presos políticos mortos sob custódia: Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.

Heleno levou as lições do chefe Frota para dentro do governo Bolsonaro. E agora termina onde tantos dos seus mestres deveriam ter terminado: na cadeia. É o fim simbólico de uma linhagem. A derrota histórica de um projeto.

O papel do Supremo

O Congresso hesitou. Governadores se omitiram. A mídia hegemônica normalizou o golpe continuado do governo Bolsonaro e seus generais. As Forças Armadas fingiram surpresa. Quem segurou a República foi o STF. Não por ativismo, mas porque, diante do fascismo, defender a Constituição é dever — não escolha.

Ao condenar generais golpistas, o Supremo inscreveu seu nome na tradição das Cortes que impedem países inteiros de desabar.

“Traidor da Constituição é traidor da pátria"

No dia 5 de outubro de 1988, quando ergueu a Constituição diante de um Congresso lotado, Ulysses Guimarães não apenas promulgou uma Carta — ele acendeu uma sentença moral contra todos os que haviam comandado, servido ou aplaudido o regime de 1964. Sua mensagem atravessou 37 anos para aparecer mais atual do que nunca.

Seu famoso brado, “Tenho nojo da ditadura”, não foi figura de linguagem. Foi acusação direta. Foi dedo em riste. Foi a voz do Brasil que sobreviveu aos porões e aos covardes que os administravam.

Hoje, quando generais — herdeiros diretos da mentalidade que Ulysses repudiou — são presos, em 2025, por tentar outro golpe, suas palavras ganham um sentido ainda mais afiado. Ulysses sabia que a ditadura não acabava numa assinatura, mas num enfrentamento moral permanente.

Aqui está o trecho mais célebre do discurso de Ulysses Guimarães na sessão solene de 5 de outubro de 1988, quando promulgou a Constituição Cidadã:

“Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amor e repulsa. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria.”

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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