O problema não é só a AfD: Merz, o chanceler “sincerão”
A pequena fala de Merz sobre o Brasil não é um episódio isolado
Quando o chanceler alemão Friedrich Merz diz, em um evento empresarial em Berlim, que “vivemos em um dos países mais bonitos do mundo”, isso não é só um elogio patriótico qualquer. No mesmo trecho do discurso, ele conta que esteve “no Brasil” na semana anterior, para compromissos ligados à conferência do clima (COP 30), e que perguntou aos jornalistas alemães que o acompanhavam quem gostaria de ficar “lá”. Ninguém levantou a mão, segundo ele. Merz acrescenta que todos teriam ficado aliviados por voltar para a Alemanha, especialmente “daquele lugar em que estávamos na noite de sexta para sábado”. Em nenhum momento ele nomeou a cidade de Belém, ela virou apenas “aquele lugar”.
A fala de Merz aconteceu no dia 13 de novembro no congresso alemão do comércio varejista, um grande encontro de empresárias e empresários do setor e no qual o chanceler estava diante de uma plateia que representa o “centro” econômico do país. Ali, transformar o Brasil em piada é uma forma de reforçar a ideia de que a Alemanha é o lugar “de verdade”: bonito, civilizado e seguro, enquanto o Brasil tem seu papel relegado ao clichê de inferioridade.
Essa pequena história não é um episódio isolado. Ela se encaixa em um padrão de declarações polêmicas que Merz vem acumulando em menos de um ano do seu mandato. Mais recentemente, já como chanceler da Alemanha, Merz falou que o país teria “problemas na paisagem urbana” por causa da migração. Essa expressão é extremamente perigosa, sobretudo por causa da história que a Alemanha tem de decidir politicamente quem pode ser visto e quem é tratado como problema, e também porque não diz claramente do que se trata. A tal “paisagem urbana” aqui significa, na prática, quem aparece na rua, quem está no metrô, quem ocupa as praças. Para ser mais direta, certos corpos, normalmente não brancos, com traços lidos como “estrangeiros”, estragam a imagem dessas cidades. Bem distante de uma discussão sobre urbanismo, isto é uma mensagem clara sobre quem é bem-vindo a ser visível e quem não é.
Antes de se tornar chanceler, ele já tinha falas lamentáveis. Em 2022, ele usou o termo “turismo social” para falar de refugiados ucranianos e sugeriu que pessoas fugindo da guerra estariam “passeando” entre países para aproveitar benefícios sociais. Óbvio que depois da reação negativa, Merz pediu desculpas e disse que tinha se expressado mal. Mas o recado ficou claro: mais uma vez refugiados aparecem como suspeitos por definição.
Em 2023 foi a vez de se referir a crianças de origem árabe como “pequenos paxás”. A palavra “paxá”, que remete à figura de um senhor autoritário do antigo Império Otomano, é usada em alemão de forma pejorativa para meninos vistos como autoritários, agressivos, “machistas” e mal-educados. Aplicada sobretudo a crianças de famílias migrantes, reforça a imagem de que essas famílias seriam, por natureza, incapazes de educar filhos “adaptados” à sociedade alemã.
E aqui entra um ponto delicado, mas que também precisa ser dito com clareza. Até hoje, uma parte significativa das pessoas de origem turca na Alemanha – sim, aqueles descendentes dos trabalhadores que reergueram o país depois da Segunda Guerra Mundial – não está plenamente integrada à sociedade alemã. Não se trata de dizer “os turcos não se integram”, isso seria leviano, pois existem milhões de pessoas de origem turca perfeitamente integradas, em todas as áreas da vida social. Mas existe um grupo numeroso que vive à margem, concentrado em certos bairros, com menos acesso a oportunidades, preso entre um país que não o reconhece plenamente como “alemão” e uma identidade de origem que também se transforma, assim como as de outras nacionalidades. Esse quadro é resultado de duas coisas ao mesmo tempo: políticas de integração falhas e discriminação estrutural, por um lado, e estratégias de fechamento e autoisolamento em parte dessas comunidades, por outro.
Uma Alemanha presa entre o passado e o futuro
A maneira como Merz fala não ajuda em nada a enfrentar esse problema real. Ao contrário, ele transforma uma questão complexa de exclusão social, racismo e falhas políticas em um rótulo fácil sobre “crianças estrangeiras mal comportadas” e “bairros estragando a imagem das cidades”. Em vez de perguntar por que uma parte dessas pessoas continua à margem, ele aponta o dedo e confirma o medo de quem já não aceita a ideia de que um alemão hoje também pode ter rosto, nome e religião diferentes do “modelo” do passado.
Por trás dessas frases há um dilema profundo da sociedade alemã. Oficialmente, o país se apresenta como moderno, aberto, globalizado. Mas, na realidade, uma parte significativa da população continua presa à ideia de que existe um “alemão padrão”, branco, de aparência europeia, com sobrenome tradicional, falando alemão “sem sotaque”. Tudo o que não se encaixa nisso é classificado como “estrangeiro”, mesmo quando a pessoa nasceu na Alemanha, tem passaporte alemão e nunca viveu em outro lugar. Existem alemães negros, com traços asiáticos e com origens diversas. O que não acompanha essa realidade é a política: Merz fala diretamente com um público que se sente ameaçado pela diversidade.
O episódio de Belém não é um caso isolado. A cidade escolhida para sediar a COP 30 e colocada no centro das discussões globais sobre a crise climática aparece, no discurso de Merz, apenas como um lugar do qual se quer fugir depressa. Merz não está apenas sendo “sincero” ou “desastrado”: ele transforma mais uma vez pessoas e territórios inteiros em exemplo negativo, como pano de fundo para tranquilizar o público alemão com a ideia de que vive em um país melhor do que os outros.
O problema, portanto, não é só a piada de mau gosto sobre o Brasil, nem uma palavra isolada aqui e outra declaração polêmica ali. Essa linha de atuação não aproxima ninguém do centro democrático, ela afasta. Tenho cada vez mais a impressão de que a Alemanha não aguenta por muito tempo esse tipo de linguagem sem ver a extrema direita chegar ao poder. Quando o próprio chanceler normaliza esse vocabulário e esse olhar sobre “os outros”, ele não protege a democracia alemã; abre caminho para a extrema direita. E a AfD agradece.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




