O roteiro neofascista contra o STF: é assim que as democracias morrem
Quando um país começa a discutir se sua Suprema Corte deve ser “enquadrada” ou “pautada pelo Parlamento”, deve soar o alarme do perigo
Da Hungria à Polônia, da Venezuela a El Salvador, a extrema-direita global segue o manual dos autocratas do século XXI: capturar, intimidar ou destruir as supremas cortes. No Brasil, o ataque ao STF não é debate jurídico — é a linha de frente de um projeto neofascista que quer reescrever as regras do país de cima para baixo.
O mundo já viu esse filme — e ele sempre termina mal
A escalada internacional da extrema-direita não é um fenômeno isolado. É a reorganização global de um neofascismo adaptado ao século XXI, higienizado, conectado às redes sociais, embalado por discursos moralistas e travestido de “reformas administrativas”. Seu objetivo é antigo: desmontar os limites institucionais ao poder absoluto. E nenhum limite é mais incômodo para um projeto autoritário do que as cortes constitucionais.
Na Hungria, Polônia, Venezuela, El Salvador, por exemplo, quatro geografias distintas, quatro culturas políticas diversas, quatro democracias que colapsaram por caminhos diferentes — mas todas começaram pelo mesmo ponto:
- Atacar o Judiciário
- Deslegitimar o Judiciário
- Capturar o Judiciário
- E então governar sem oposição.
O Brasil de hoje está, perigosamente, dentro dessa gramática.
O laboratório húngaro: onde nasceu o autoritarismo 2.0
Quando Viktor Orbán voltou ao poder em 2010, fez exatamente o que estudiosos como Levitsky e Ziblatt descrevem em Como as Democracias Morrem: o autocrata do século XXI captura instituições de dentro, sem golpes clássicos, sem rupturas explícitas, sem rasgar a Constituição.
O Tribunal Constitucional húngaro foi o primeiro alvo. Reduziram suas competências, aumentaram cadeiras, nomearam aliados, criaram barreiras para revisar leis. O Judiciário virou adereço. A democracia virou fachada.
Orbán inventou o que hoje chamamos de autoritarismo de baixa intensidade: eleições continuam, mas árbitros desaparecem. É o sonho da extrema-direita brasileira. Porque, aqui também, o discurso é o mesmo: “O STF se intromete demais”, “precisa de limite”, “precisa de reforma”, “precisa de mais ministros”, “precisa de menos”. O conteúdo muda; a intenção é idêntica: abrir brechas para capturar o Supremo.
Polônia: o ataque silencioso disfarçado de tecnicismo
O PiS polonês fez ainda pior: anulou indicações do Parlamento anterior, paralisou o Tribunal Constitucional com quóruns impossíveis, alterou regras internas até transformar o tribunal em peça decorativa. Nada disso soou como golpe. Tudo foi aprovado por lei, transmitido pela TV, legitimado por uma retórica moralizante.
É o que Levitsky e Ziblatt chamam de autocratização legal: o uso da própria legalidade para corroer os pilares da democracia. No Brasil, o movimento é semelhante. Sob o pretexto de “equilibrar poderes”, “rever decisões monocráticas” ou “atualizar o modelo”, setores extremistas tentam mudar por dentro o funcionamento do STF, com o claro objetivo de alterar sua composição e seu poder de contenção.
Venezuela: quando mudar cadeiras muda o país
Em 2004, Chávez ampliou o número de ministros da Suprema Corte e nomeou aliados. Foi o golpe técnico perfeito: não precisava fechar o Congresso, nem censurar jornais — bastava transformar a Corte em instrumento de obediência.
Quando um governo controla o tribunal constitucional, controla:
- o sentido da lei,
- o alcance da Constituição,
- e a própria definição de democracia.
É por isso que cada vez que, no Brasil, alguém propõe aumentar ou reduzir o número de ministros do STF, devemos perguntar: quem ganha com isso? E para quê? Porque essa história, lá, acabou com a captura total do Estado.
El Salvador: o autogolpe sem tanques e sem ruído
Bukele mostrou ao mundo a versão TikTok do autoritarismo: em 1º de maio de 2021, sua base legislativa destituiu cinco juízes da Sala Constitucional, ao vivo, sem debate, sem processo. Bastou uma sessão. Nenhum tiro. Nenhuma marcha militar. Apenas a destruição de um poder que modera.
Desde então, Bukele governa sem oposição judicial — e vende ao mundo a fantasia de um “autoritarismo eficiente”. É essa estética sedutora do “líder providencial” que a extrema-direita brasileira tenta imitar: militarizada, messiânica, higienizada, instagramável. Mas, para isso funcionar, é preciso eliminar o obstáculo: o STF.
A teoria é clara: o Judiciário é o primeiro alvo do fascismo
Jason Stanley, em How Fascism Works, ensina que o fascismo moderno precisa destruir os locais onde ainda existe verdade verificável: imprensa, universidades, ciência e cortes constitucionais. Cortes são o último espaço institucional onde fatos ainda têm força — onde propaganda não vence evidências. Por isso, o fascismo, ontem e hoje, precisa deslegitimá-las. Quando não consegue deslegitimar, tenta capturar. Quando não consegue capturar, tenta destruir.
Levitsky e Ziblatt afirmam que líderes autoritários seguem três passos:
- rejeitam regras democráticas,
- toleram a violência política,
- perseguem opositores e buscam restringir direitos civis.
Só conseguem executar o passo 3 — e avançar para o 4, o domínio total — quando o Judiciário é neutralizado. É o que vemos no mundo inteiro. É o que vemos no Brasil.
O Brasil no espelho: o STF virou alvo porque funciona
A extrema-direita brasileira sabe que:
- foi o STF que manteve o país de pé durante a tentativa golpista,
- foi o STF que desmantelou a milícia digital,
- foi o STF que garantiu eleições limpas,
- foi o STF que impediu rupturas institucionais em 2022–2023,
- foi o STF que enquadrou generais, financiadores, agitadores e articuladores de ataques à República.
É por isso que o STF virou o inimigo público número um do neofascismo brasileiro. Não porque erra. Mas porque acerta onde mais dói. E porque, enquanto existir, impede que o projeto neofascista cumpra sua etapa final: a captura total do Estado, seguida da legitimação jurídica da exceção permanente.
A escolha diante de nós: travar a porta ou deixá-la escancarar
O Brasil está num ponto crítico entre repetir o roteiro da Hungria, Polônia, Venezuela e El Salvador — ou interrompê-lo de vez. A campanha diária contra o STF não é ruído político: é o campo de batalha central do projeto autoritário brasileiro. Sua força não está apenas no discurso — mas em manobras legislativas, PECs oportunistas, pressões institucionais, tentativas de deslegitimar ministros, intimidação política e propostas que parecem técnicas, mas são golpes por dentro. A democracia não morre quando o tanque avança. Morre quando a sociedade acha normal enfraquecer sua Suprema Corte.
O STF não é um fim em si mesmo. É o mecanismo que impede que o Brasil amanheça, um dia, sob a lógica do líder absoluto, da verdade única, do inimigo interno, da violência autorizada — pilares do neofascismo global. Proteger o STF não é proteger ministros. É proteger o futuro do país.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




