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Fernando Lionel Quiroga

É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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O valor da memória e o iminente risco do genocídio das mentes

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Desde o golpe perpetrado contra o governo da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o Brasil vem atravessando um processo de profunda aprendizagem em todas as esferas: civil, política, midiática - e gestando um novo senso comum em defesa dos valores democráticos. Mas isso não sem que uma parcela da população, os bolsonaristas, agora raivosos com o resultado das eleições, se utilizem do expediente democrático para manifestar a própria derrocada da democracia. Um absurdo a mais, entre os que nos acostumamos a ver ao longo dos últimos quatro anos.

A ênfase, aqui, sobre a aprendizagem diz respeito a sua principal aliada: a memória. Sem memória não há aprendizado. Logo, o que temos é: de um lado, o campo democrático, que aprendeu como nunca o valor e o peso da memória. Foi necessário retomar o contexto da Alemanha nazista; foi preciso compreender características essenciais do fascismo Italiano de Benito Mussolini. Foi necessário empreender esforços para compreender o que é, afinal, o neoliberalismo – que a sagaz Naomi Klein chamou de capitalismo do desastre – e que se alastrou e segue se alastrando por todo o mundo: desde o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, ao ex-presidente dos EUA, Donald Trump, à primeira-ministra da Itália Giorgia Meloni até o presidente derrotado Jair Bolsonaro. Em suma: o Brasil tornou-se um país ainda mais enigmático,  e percebemos a urgência de tornar a conhecê-lo. De outro, a massa de cobaias de uma guerra híbrida que vem se perpetrando no Brasil sobretudo por meio das estratégias algorítmicas que orientam as redes sociais, deixando claro serem mais armas que qualquer coisa. 

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A memória é o que temos para estabelecer comparações, conexões e, finalmente, desenvolver a crítica. O que aprendemos, ademais, foi que o gesto intelectual de olhar para trás não tem nada de obsoleto, mas de uma necessidade que é constitutiva da nossa própria existência, desde nossa mais remota ancestralidade. Rever o passado, trazendo-o ao contemporâneo por meio de representações e crítica (na representação, muitas vezes, a crítica já está contida), é o principal legado dos últimos anos. Justamente um período marcado pela atrocidade política, ansiosa pela corrosão do Estado e das políticas sociais, aliado ao contexto da pandemia do Covid-19, que fez do Brasil palco de um verdadeiro espetáculo da morte, como ficou demonstrado pela vergonhosa desproporção entre o país ter apenas 3% da população mundial e ser responsável por 11% dos casos letais em todo o planeta.

Mas, se por um lado foi a memória quem nos salvou do destino apocalíptico a que estaríamos submetidos no caso da reeleição de Jair Bolsonaro, por outro, percebemos o seu esfacelamento por meio do projeto de desinformação que segue em curso e que vem desnorteando uma parte da população brasileira, que obedece à risca aos comandos mais absurdos e burlescos, como a propalada espera de um “General Benjamin Arrola”. Nas ruas, a grotesca esperança nas forças armadas remete ao teatro do absurdo de Samuel Beckett em “Esperando Godot”. 

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Da memória, especialmente quanto ao povo nordestino, podemos ensaiar uma breve reflexão: não é apenas a pobreza e a fome que renderam votos ao presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva. A memória, tal como o varvito – esta rocha sedimentar – alimenta-se de camadas que vão se acumulando ao ritmo dos anos. O risco de terceirizar a memória, depositando tudo em um smartphone, HDs e derivados, é a perda da condição de durabilidade e solidez. Daí o caráter descartável das fake news: delas, nada fica, nada pode ser acumulado; não passa da réplica de um osso sem tutano. O homem de espírito torna-se, neste movimento, um homem de plástico.

Deixemos vir à luz, finalmente, episódios como a “Grande Seca”, de 1876-1879 que atingiu fortemente o nordeste brasileiro e cujas referências se vinculavam, segundo Secreto, “às crônicas naturalistas, caracterizadas por recorrer a esse horror para narrar o inenarrável: famílias inteiras morrendo de fome, pais vendendo os filhos, comendo-os, abandonando-os. Mulheres vendendo-se por um prato de comida, prostituindo-se. Corvos comendo crianças exauridas”. (SECRETO, 2020, p. 35).

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A memória funde-se não à memória apenas em sentido simbólico, livresco. Ela se funde à nossa carne e ao nosso sangue, e atravessa gerações por meio de nossa memória ancestral. É dessa profundidade absoluta que nasce o sentido crítico do povo nordestino e o reconhecimento - quase um sentimento de autopreservação – para quem mais investiu naquela região, como a transposição do Rio São Francisco, ou o programa Luz para Todos, implantado em 2011 pelo governo da presidenta Dilma Rousseff, ou o premiado Programa Cisternas, de 2003, que entregou mais de 1,1 milhão de cisternas no nordeste.

Temos, de um lado, a dimensão da memória que nos alerta sobre os elevados riscos de cairmos no vale desconhecido do tempo e de perdermos a nossa própria condição humana e, de outro, um programa que deliberadamente faz uso da tecnologia em seu sentido mais grosseiro - utilizando-a como arma contra nações e povos inteiros -, visando apagar a memória de milhares de pessoas para promover um genocídio das mentes. Este é o imbróglio que todos somos igualmente chamados a enfrentar. A começar, pelo repúdio às manifestações golpistas e aos bloqueios que novamente dão sinais de fôlego. É preciso que alguém leve a eles a mensagem de que Godot não virá, e de que a realidade está posta, e deve ser vivida em sua máxima concretude. Sabemos, no entanto, que o que está em curso não é apenas a luta política do berço grego. É a política envenenada de fanatismo religioso. O perigo não é pouco, como se vê no último diálogo que fecha o ato e a peça de Samuel Beckett: mesmo depois de avisados por um garoto de que Godot “não virá, talvez amanhã”, eles conversam:

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Vladimir: Então, devemos partir?

Estragon: Sim, vamos.

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Eles não se movem.

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