Fernando Horta avatar

Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

76 artigos

HOME > blog

Palantir no MEC: a hipoteca do futuro brasileiro

A entrega de dados educacionais a uma empresa ligada à inteligência dos EUA ameaça a soberania, a privacidade e o futuro das crianças brasileiras

Palantir no MEC: a hipoteca do futuro brasileiro (Foto: ABR)

Não sejamos ingênuos: digitalização significa controle. O debate contemporâneo sobre transformação digital não é sobre se devemos ou não digitalizar processos públicos – esse barco já partiu. A questão central é: quem controla o quê? E aqui reside uma escolha política fundamental: é infinitamente preferível, do ponto de vista da soberania nacional, que seja um Estado gerido democraticamente quem detenha o controle dos dados de sua população do que empresas privadas estrangeiras, especialmente aquelas umbilicalmente vinculadas aos aparatos de vigilância e inteligência de potências hegemônicas.

A Palantir Technologies é uma empresa de “mineração de dados”, fundada em 2003 por Peter Thiel, cofundador do PayPal, e Alex Karp, com investimentos iniciais estimados em 9 bilhões de dólares. Criada na esteira dos atentados de 11 de setembro para trabalhar com a CIA na “guerra ao terror”, a Palantir consolidou-se como fornecedora privilegiada de serviços de espionagem para o Pentágono, a CIA, o MI6 britânico e o Mossad israelense. Seu histórico inclui processos judiciais nos Estados Unidos por contrabando de informações e violações de privacidade. Atualmente, a empresa opera o Sistema Operacional do Ciclo de Vida da Imigração (Immigration OS) para a agência ICE do governo Trump, rastreando imigrantes para deportação em massa, além de fornecer suporte tecnológico às operações militares israelenses em Gaza. Peter Thiel, seu cofundador, é um dos maiores financiadores da extrema direita norte-americana. A Palantir não é apenas uma empresa de tecnologia – é um braço operacional do complexo industrial-militar-informacional dos Estados Unidos.

O que torna o caso ainda mais grave é que esta não é a primeira vez que o Ministério da Educação brasileiro flerta com a ideia de entregar dados sensíveis da educação nacional a empresas estrangeiras. Nos primeiros anos do governo Lula 3, vimos a equivocada proposta de entregar a conectividade das escolas brasileiras nas mãos da empresa de Elon Musk, a Starlink – outro projeto que, felizmente, encontrou resistência. Há um padrão preocupante aqui: uma persistente incapacidade de compreender que a infraestrutura digital de serviços essenciais é questão de soberania nacional, não de conveniência administrativa ou sedução tecnológica.

Os dados entregues à Palantir por meio do FNDE carregam um perigo exponencialmente maior do que outras formas de vazamento informacional: eles falam sobre o futuro do Brasil. São dados de crianças e adolescentes, de seus percursos educacionais, de seu desenvolvimento dentro do Estado brasileiro, mediado pelos bens públicos que a Constituição de 1988 garante como direitos fundamentais. Isso significa que a Palantir não apenas pode fazer um diagnóstico do Estado brasileiro por dentro – exatamente por meio do entendimento dos roteiros de vida de cada criança, suas vulnerabilidades, seus acessos e suas exclusões –, mas também poderá elaborar projeções sobre o Brasil do futuro, medindo a capacidade dos nossos programas, projetos e políticas públicas de desenvolver (ou não) o país nos próximos anos. Estamos, literalmente, entregando as chaves do nosso devir.

Consideremos seis variáveis críticas que podem ser captadas e analisadas por meio da integração MEC-Palantir: (1) padrões de mobilidade geográfica e deslocamento – revelam dinâmicas demográficas, êxodo rural, vulnerabilidades territoriais e pressões sobre a infraestrutura urbana; (2) correlações entre investimento educacional e desenvolvimento regional – permitindo mapear onde políticas funcionam ou fracassam, identificando prioridades estratégicas de outros Estados ou atores privados; (3) dados socioeconômicos cruzados com desempenho escolar – construindo perfis preditivos sobre mobilidade social, criminalidade futura e potencial produtivo de diferentes regiões; (4) eficácia comparativa de programas sociais – identificando quais políticas públicas geram mais retorno, informação valiosa para pressões por ajustes estruturais ou cortes orçamentários; (5) mapeamento de vulnerabilidades sistêmicas – pontos fracos da logística estatal, dependências críticas e falhas de cobertura que podem ser exploradas em cenários de crise; (6) projeções sobre a capacidade de formação de capital humano – estimativas sobre a força de trabalho brasileira futura, seus gaps de qualificação e sua competitividade internacional. Cada uma dessas variáveis, isoladamente, já seria sensível; integradas por meio de algoritmos de IA, tornam-se um arsenal de inteligência estratégica sobre as vulnerabilidades e potencialidades do Brasil.

Para qualquer ideia séria de soberania nacional, a presença da Palantir gerindo dados públicos brasileiros é simplesmente inaceitável. Mas, quando se trata do Ministério da Educação e de informações sobre nossas crianças e adolescentes, o contrato ultrapassa a imprudência e adentra o terreno das ilegalidades. Há fortes indícios de violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e dos princípios constitucionais que regem o direito à privacidade e à proteção integral da infância. Estamos diante de possíveis crimes previstos em nossos códigos de proteção à criança e ao adolescente. O Brasil não pode hipotecar as informações sobre seu futuro pela incompetência, ingenuidade ou cumplicidade de seus ministros no presente. O que está em jogo não é apenas uma questão técnica de gestão de dados – é a própria capacidade do país de determinar seu destino sem a interferência de aparatos de inteligência estrangeiros. A revogação imediata deste contrato não é apenas recomendável: é imperativa.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados