Quando a análise política se converte em preconceito
O antissemitismo não se anuncia em bandeiras, mas em sutis distorções da percepção
Quando guerra e polarização dominam, as palavras carregam não apenas significados, mas destinos. Uma das mais graves distorções no debate contemporâneo é a confusão entre as ações do governo israelense em Gaza e a identidade de judeus espalhados pelo mundo. Essa associação automática não é apenas equivocada: é uma forma explícita de antissemitismo.
O antissemitismo, convém lembrar, não nasceu ontem. Ele atravessa séculos como uma sombra persistente, das perseguições medievais aos horrores do Holocausto. No cerne dessa discriminação está a ideia de responsabilizar indivíduos por sua fé ou cultura, como se todos compartilhassem o mesmo destino político. Hoje, o erro se repete quando protestos contra Israel se convertem em ataques a sinagogas, ameaças a famílias judias em países tão distintos quanto Brasil, França ou Argentina.
O atual conflito em Gaza, iniciado em outubro de 2022, quando o Hamas lançou ataques armados a partir da Faixa de Gaza contra Israel, transformou a região em um epicentro de sofrimento humano. Desde então, a escalada militar e política desenhou um cenário de horror: milhares de mortos, famílias deslocadas e uma fome avassaladora que tinge de cinza qualquer resquício de esperança, com a inanição interrompendo vidas em silêncio, sob o peso de escombros e desespero.
Contudo, atribuir a responsabilidade por essas ações a judeus que vivem em Nova York, Berlim ou São Paulo é cair na armadilha da generalização — e generalizações, como sabemos, sempre alimentam o preconceito.
Analisar as ações de governos não é apenas legítimo, mas necessário. Questionar o bloqueio a Gaza, examinar a expansão de assentamentos, avaliar bombardeios contra civis — tudo isso cabe no campo da reflexão crítica e da defesa dos direitos humanos. Mas quando a indignação se torna hostilidade contra judeus que nada têm a ver com tais políticas, o discurso abandona a razão e afunda no preconceito. É o mesmo que culpar muçulmanos no Brasil pelas decisões de Teerã, ou cristãos na Nigéria pelos caminhos tomados em Washington.
O que torna esse fenômeno particularmente danoso é sua dupla face: de um lado, cria insegurança para milhões de judeus que vivem fora de Israel; de outro, esvazia o debate sobre o futuro do Oriente Médio, desviando a atenção do cerne do problema — as escolhas políticas de um Estado — para um bode expiatório global. É uma distração que não apenas perpetua injustiças históricas, mas também enfraquece a luta por justiça no presente.
O antissemitismo, em sua essência, é como um veneno que não se apresenta em frascos visíveis, mas se infiltra nos copos comuns de onde todos bebem. Quem o ingere nem sempre percebe, mas aos poucos ele adoece a conversa, corrompe os gestos, distorce a visão. Instala-se disfarçado de “crítica social”, de “revolta justa”, mas seu efeito é sempre o mesmo: transformar comunidades inteiras em alvos, inocentes em réus, identidades em acusações. É uma toxina que age silenciosamente até que, sem perceber, todos compartilhem de um mal-estar coletivo.
Separar análise de preconceito exige clareza moral e precisão conceitual. Não é possível avançar na construção de uma paz justa enquanto judeus de diferentes países continuarem sendo responsabilizados por políticas sobre as quais não têm voz. Igualmente, não é possível combater o antissemitismo se optarmos pelo silêncio diante de sua nova veste.
A honestidade intelectual exige isso: analisemos governos, jamais povos. Julgar Israel não é julgar os judeus. Atacar judeus não é o mesmo que avaliar Israel. Confundir os dois é perpetuar o próprio erro que a História já nos ensinou a reconhecer e condenar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




