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Fernando Nogueira da Costa

Professor Titular do IE-UNICAMP

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Quem paga a dívida pública brasileira e quem ganha com ela

Entenda como impostos pagos pela população financiam juros elevados e alimentam a concentração de renda no sistema da dívida pública brasileira

Quem paga a dívida pública brasileira e quem ganha com ela

Sempre quando se fala em dívida pública no Brasil, o debate é apresentado como algo técnico, distante, quase indecifrável. Mas a lógica de sustentação dessa dívida é simples — e profundamente política.

Ela conecta impostos pagos por toda a sociedade a rendimentos financeiros concentrados em poucos grupos. Entender esse mecanismo é essencial para compreender por qual razão o país cresce pouco e concentra tanto.

O ponto de partida é conhecido. O Estado arrecada impostos principalmente sobre consumo e trabalho. Esses tributos pesam mais sobre os mais pobres e a classe média em lugar de incidir sobre grandes patrimônios.

Com essa arrecadação, o governo paga salários, aposentadorias, saúde, educação e políticas públicas básicas. Isso é o chamado gasto primário.

O problema começa quando entram em cena os juros da dívida pública. Mesmo quando o governo arrecada o suficiente para cobrir todas as despesas sociais — o chamado superávit primário — o dinheiro não basta.

Falta para pagar os juros, atrelados à taxa Selic, historicamente elevada no Brasil. Assim, o déficit nominal não nasce do excesso de gasto social, mas sim do custo financeiro da própria dívida.

Como o Estado paga juros se não cabem no orçamento? Emitindo novos títulos da dívida. Com o dinheiro obtido nessa emissão, o Tesouro paga os juros e os títulos em vencimentos. Esse processo se chama rolagem da dívida. Ele não é exceção nem descontrole: é o funcionamento normal da dívida pública brasileira.

Esses títulos são comprados por bancos, fundos de investimento, fundos de pensão, seguradoras e por pessoas físicas, direta ou indiretamente, por meio de fundos e previdência privada. Mesmo quem nunca comprou um título participa desse sistema. Mas a participação é profundamente desigual.

O papel do Banco Central é decisivo. Ao definir juros elevados e garantir liquidez permanente aos títulos públicos, ele transforma a dívida em um investimento quase sem risco, com retorno alto em padrões internacionais. O risco é socializado — afinal, o Estado sempre paga. O rendimento, porém, é privatizado.

Ao longo do tempo, os juros recebidos são reinvestidos. Surgem os juros sobre juros. Forma-se um mecanismo automático de enriquecimento financeiro, desvinculado da produção, do emprego e da inovação. A dívida pública passa a funcionar como uma máquina permanente de multiplicação de riqueza financeira.

Os efeitos distributivos são claros. Os mais pobres pagam impostos indiretos e dependem de serviços públicos pressionados por ajuste fiscal. A classe média vive uma contradição: paga impostos e, às vezes, recebe algum rendimento financeiro, mas perde com crescimento baixo e serviços deteriorados. Já a classe média alta financeirizada, com educação superior e acesso a produtos financeiros, passa a se beneficiar cada vez mais da rolagem da dívida. No topo, as elites financeiras concentram títulos, influenciam a política monetária e acumulam renda via juros elevados.

Essa lógica é diferente da observada em países como os Estados Unidos. Lá, a dívida pública convive com um mercado de ações robusto. Com capitalização, por meio de emissões de novas ações, financia empresas, inovação e expansão produtiva. No Brasil, a dívida sustenta principalmente a acumulação rentista e bloqueia o crescimento econômico.

Por isso, o debate central não deveria ser “como pagar a dívida”, mas “como desmontar esse arranjo”. Ele a transforma em instrumento permanente de concentração de renda. Enquanto essa engrenagem seguir intocada, o país continuará transferindo recursos de quem trabalha e consome para quem vive de juros — e os economistas neoliberais chamando isso de “responsabilidade fiscal”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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