Sentenças que incomodam as elites: a democracia em disputa
Não demoraram a surgir as pressões recolonizadoras, e certamente haverá novos episódios de confronto diante da ofensiva da atual administração dos EUA
A poucos dias de o povo do Brasil recordar o “Grito do Ipiranga”, outra independência, como forma de superar as tensões autoritárias e coloniais, também sinaliza que “chegou a hora!”. Diante das ameaças e da insurreição violenta contra a ordem democrática e as instituições legalmente constituídas, o STF travou sua batalha como guardião da Constituição em favor da República e da igualdade de direitos, ao condenar Jair Bolsonaro e os demais líderes golpistas.
Por meio dessa reafirmação democrática, acerta-se uma conta pendente com o passado, uma dívida que remonta a 1964. Do mesmo modo que a Argentina o fez com o célebre “Nunca Mais” do Julgamento das Juntas, em 1985. A luta constante, ao longo de tantos anos, pelos direitos humanos e pela mobilização popular em busca de verdade e justiça fez com que a impunidade chegasse ao fim no país já há vinte anos, em feliz coincidência com os oitenta de Nuremberg, na Alemanha.
Talvez porque o vazio de responsabilidade — isto é, a ausência de resposta — que renega o Direito, mutila a memória e desonra os cidadãos seja inaceitável. Por isso, crimes dessa natureza são imperdoáveis em qualquer tentativa de anular sua punição.
Faço este alerta porque a sentença não será bem recebida pelas elites que se opõem ao processo emancipatório que busca restabelecer a soberania. Isso provocará novos reagrupamentos: de um lado, aqueles que defenderão a restauração do pacto tardocolonial; de outro, os que apoiam um governo independente e republicano. Para uns, privilégios e racialização; para outros, inclusão e participação.
Esse conflito também se evidenciou recentemente na tensão entre o Poder Judiciário e as corporações tecnológicas, quando, de maneira inédita na região, o STF decidiu ampliar as obrigações das plataformas digitais sobre os conteúdos publicados por seus usuários, diante da propagação de notícias falsas e discursos de ódio nas redes. Tratou-se também de reforçar a proteção aos direitos das pessoas e a preservação dos valores constitucionais.
Não demoraram a surgir as pressões recolonizadoras, e certamente haverá novos episódios de confronto diante da ofensiva da atual administração dos Estados Unidos e das novas direitas na região. De distantes centros de poder tecnológico e financeiro internacionais são elaboradas estratégias de intervenção nas periferias, com o apoio de minorias pró-consulares. O Brasil lidera hoje uma nova independência contra o tardocolonialismo tecnológico-financeiro.
É preciso recordar que a democracia se sustenta em um pressuposto: a igualdade perante a lei, institucionalizada pelo sufrágio popular. Mas, para que o modelo funcione, são necessárias sociedades que superem um determinado patamar de justiça social. Por isso, há razões poderosas para preocupação quando, como em nossos países, são adotadas políticas de exclusão social e empobrecimento em massa. Assim, sacrifica-se a democracia no altar do mercado e a justiça em troca do lucro de poucos.
Mais de 210 milhões de pessoas, diante da metamorfose provocada pelo impacto da digitalização cotidiana e de um pretenso neoescravismo, devem celebrar essa nova defesa judicial dos valores democráticos. Sob o paradigma dos direitos humanos, é fundamental fortalecer as estratégias no campo jurídico — a partir de uma necessária perspectiva de integração sub-regional — de modo a proteger aqueles que continuam sendo alvo de desigualdade e violência. Mais ainda: é urgente perguntarmo-nos o que acontecerá se não o fizermos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



