Sessão da Câmara transforma deputados em lutadores e jornalistas em intrusos
Enquanto Glauber Braga é arrancado e rasgado, a TV Câmara é desligada e Hugo Motta diz não saber por quê; dois pesos duas medidas se tornam política pública
O plenário da Câmara, que deveria ser território do verbo, virou arena de corpo contra corpo. A sessão que antecedia a votação de cassação de Glauber Braga (PSOL-RJ) degenerou em pancadaria, paletó rasgado, seguranças avançando, parlamentares empurrados — enquanto a imprensa era expulsa do plenário e o sinal da TV Câmara simplesmente desaparecia do ar.
Não foi falha técnica: foi blackout político. A ausência súbita de imagem, som e registro institucional não é silêncio — é censura luminosa. É quando o poder decide calar o país, não pela palavra, mas pela interrupção dela.
A cena registrada apenas por celulares de parlamentares e repórteres expôs fissuras profundas do Parlamento. O deputado ocupou a cadeira da presidência como protesto, algo passível de punição regimental, mas passível também de diálogo — alternativa que não foi sequer tentada.
O que chocou não foi o protesto, e sim o método para reprimi-lo: uso da força, expulsão da imprensa, corte da transmissão. Três golpes contra a democracia na mesma tarde, cometidos dentro do órgão que deveria defendê-la.
E é impossível ignorar o símbolo maior dessa escuridão momentânea: Óscar Niemeyer projetou os plenários da Câmara e do Senado sem janelas para que a imprensa fosse os olhos da sociedade brasileira. Não há vidro para o povo mirar — há câmeras. Por isso desligá-las não é simples decisão técnica: é fechar o único olho que a arquitetura deixou aberto.
Lastimável também ver o contraste na cobertura jornalística, especialmente na GloboNews. Enquanto Natuza Nery, Gabeira, Ana Flor, Otávio Guedes e Flávia Oliveira exerciam análise com sobriedade e senso crítico, havia no ar a busca pela compreensão e não pela vingança.
Já Joel Fonseca, também da GN, escorregou para o jornalismo de lado escolhido, quando a opinião vem antes do fato e o enquadramento serve ao impulso emocional. Chamou o ato de Glauber de “showzinho”, defendeu a ação violenta da polícia legislativa e tratou a cassação como espetáculo merecido.
Seus colegas não embarcaram nessa deriva ideológica. E não é coincidência que a GloboNews oscile em 0,3 pontos — cerca de 90 mil espectadores em um país com mais de 213 milhões de habitantes. Jornalismo sem pluralidade vira eco. E eco, por mais alto que reverbere, não tem força para iluminar.
Sobre Hugo Motta, presidente da Câmara, o constrangimento cresce. Vive aquilo que a rainha Elizabeth chamaria de annus horribilis: decisões erráticas, autoridade frágil, polícia legislativa que age sem coordenação clara, como se o comando fosse líquido e escorresse pelas mãos.
A cadeira que ocupa parece ter dobrado de tamanho diante dele. Alterna punições como quem busca equilíbrio visual: pune à direita aqui, à esquerda ali, imaginando que simetria formal signifique justiça material. Não significa. Justiça não nasce do espelho, mas do critério.
E é aqui que o país engasga: a Câmara tem usado e abusado de dois pesos e duas medidas. Pelo mesmo ato — ocupar a presidência do plenário — alguns parlamentares recebem advertência leve ou suspensão temporária, muitas vezes por noventa dias, enquanto outros são condenados à cassação plena, acompanhada de inelegibilidade. A régua muda conforme o rosto. A pena varia conforme o lado. A ofensa é idêntica, mas o veredito não. Chamam isso de disciplina, mas a pergunta se impõe: será justiça ou cálculo político? Democracia não pode funcionar como balança de feira — onde um lado pesa mais porque convém pesar mais.
Motta nega ter ordenado o corte da TV e a retirada de jornalistas. Mas se não ordenou, quem ordenou? Se alguém decide no lugar dele, preside pouco. Se decide e depois desmente, comunica insegurança. Há uma sombra sobre o poder quando o próprio presidente não sabe — ou não admite — quem apagou a luz.
O episódio não é isolado. Meses atrás, deputados de direita sentaram-se na mesma cadeira presidencial e transmitiram ao vivo, sob risos e celulares erguidos. Não houve força policial. Não houve blackout. Não houve escorraçamento da imprensa. A equidade claudica quando pesos distintos medem atos semelhantes — e isso fere o espírito republicano.
Não se trata de absolver Glauber. Ocupar a mesa é afronta regimental e pede resposta. Mas a resposta não pode vir vestida de truculência nem empunhada no escuro. Parlamento sem imprensa é sala fechada. E sala fechada é penumbra; penumbra é terreno fértil para abusos.
Nas imagens que escaparam pelas brechas, vemos deputadas ao chão e um cocar indígena pisoteado, símbolos em ruína sob o tapete azul. Vemos portas fechadas e jornalistas barrados tentando exercer o direito mais elementar da República: ver para contar.
O risco agora é o costume. Se o país normaliza a violência em plenário, normaliza também a invisibilidade. Cada câmera desligada é um centímetro de sombra que avança. E sombras, quando crescem, pedem morada.
O que resta é investigação. Com nome, com responsabilidade e com consequências — não apenas notas mornas ou gestos protocolares. Quem deu a ordem? Quem desligou as imagens? Quem decidiu que o povo não deveria ver o que lhe pertence por direito?
Hoje a democracia tropeçou — mas não caiu. Manca, respira e pede luz. Que amanhã as câmeras sejam ligadas antes do primeiro golpe de voz, e que ninguém ouse apagá-las. Porque política suporta gritos e crises — mas não sobrevive à escuridão.
Que se acenda a República, enquanto ainda há quem queira vê-la.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




