Trump ameaça a Venezuela e mira a América Latina inteira
No meio do tabuleiro está o Brasil
As manchetes internacionais desta segunda-feira, 3 de novembro, revelam o grau de tensão que paira sobre o continente. Donald Trump, em entrevista ao programa 60 Minutes, afirmou que “os dias de Nicolás Maduro estão contados”, ao mesmo tempo em que tentou amenizar a retórica de guerra — “I doubt it. I don’t think so” (Duvido. Acho que não.)— quando questionado sobre uma possível invasão terrestre da Venezuela.
Mas o duplo discurso é típico da estratégia trumpista. Enquanto fala em cautela, o Pentagono amplia sua presença militar no Caribe, deslocando navios de guerra e porta-aviões sob o pretexto de combater “narcoterroristas”, o novo eufemismo para justificar ações militares extraterritoriais.
Remake tropical da Guerra Fria
O The Guardian, a France 24 e o El País destacaram a mesma contradição. Trump joga com o medo e a expectativa, transformando a crise venezuelana em um espetáculo político para consumo interno — uma espécie de remake tropical da Guerra Fria. Analistas apontam que o presidente norte-americano busca retomar o controle simbólico da “América para os americanos”, testando os limites da doutrina Monroe em versão 2025.
Enquanto isso, a oposição venezuelana tenta capitalizar o caos. Maria Corina Machado, recentemente agraciada com o Prêmio Nobel da Paz, declarou-se “pronta para assumir o governo de transição”, endossada por uma rede midiática e diplomática que atua em sintonia com Washington. A declaração caiu como gasolina sobre o cenário já inflamado. Maduro respondeu que o país “não aceitará ultimatos imperiais” e que “qualquer agressão será respondida com a força do povo e do Exército Bolivariano”.
A ameaça, portanto, não é apenas sobre Caracas — é sobre a América Latina inteira. Cada movimento de Trump, cada frase calibrada para provocar o inimigo e seduzir seus aliados internos, repercute nos 33 países da América Central, América do Sul e Caribe. É o retorno do velho jogo. Os Estados Unidos movem suas peças, e a região inteira sente o tremor das engrenagens imperiais.
A doutrina regional do narcoterrorismo
O termo “narcoterrorismo” espalhou-se como vírus político pela América Latina. Ainda que nenhum país da região tenha formalizado juridicamente a substituição de “narcotráfico” por “narcoterrorismo”, vários governos e lideranças conservadoras já o adotam extraoficialmente, em discursos, comunicados e operações policiais.
Na Argentina, o presidente Javier Milei e sua ministra da Segurança, Patricia Bullrich, vêm utilizando regularmente o termo em conferências internacionais para associar o tráfico de drogas ao terrorismo. No Paraguai, o governo de Santiago Peña passou a usar “narcoterrorismo” em comunicados oficiais das Forças Armadas para designar grupos ligados ao PCC e ao Comando Vermelho na fronteira com o Brasil, aproximando sua política de segurança da agenda de Washington.
O mesmo ocorre na Colômbia, onde o termo foi resgatado por setores militares nostálgicos do uribismo; no Equador, após a onda de violência ligada a cartéis costeiros; e no Peru, nas regiões amazônicas onde as operações contra o narcotráfico são conduzidas como “campanhas antiterroristas”.
Trata-se de um movimento discursivo coordenado, que transforma uma categoria policial — o narcotráfico — numa categoria geopolítica e ideológica, legitimando intervenções externas sob o pretexto da segurança continental. O “narcoterrorismo”, na prática, é a nova máscara do velho intervencionismo.
O Brasil no centro da disputa
No Brasil, a narrativa do “narcoterrorismo” já chegou ao Congresso. Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados propõe substituir o termo narcotráfico por narcoterrorismo. O detalhe técnico esconde uma ambição geopolítica: criar base jurídica para que os EUA possam intervir militarmente em qualquer país latino-americano sob o pretexto de combater o terrorismo.
Embora a adoção oficial do termo ainda esteja em debate parlamentar, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, responsável pela chacina das comunidades do Alemão e da Penha, em 28 de outubro, comemorou a matança de 130 pessoas, e passou a utilizar exclusivamente o termo “narcoterroristas” para se referir às vítimas da operação. Seu secretário de Segurança Pública, Victor Santos — assim como poíticos e influenciadores da extrema-direita — só usam a expressão "narcoterrorismo" e "narcoterrorista" quando se referem à chacina na Comuniudade do Alemão e da Penha — imitando a retórica trumpista.
Mais grave ainda. O senador Flávio Bolsonaro, em mensagem direta ao secretário da Guerra dos EUA, Pete Hegseth, chegou a pedir que o governo norte-americano “bombardeasse os narcoterroristas” supostamente localizados na Baía de Guanabara — uma declaração que ultrapassa o limite da insensatez e beira a convocação pública de intervenção estrangeira em território brasileiro.
O último abrigo
O desespero da extrema-direita e da direita é enorme. A eleição presidencial de 2026 está posta. A esquerda e os setores progressistas já escolheram seu candidato: Lula. As direitas derrotadas em 2022 não querem perder novamente — e certamente por isso estejam agarradas à última tentativa de barrar a reeleição do presidente Lula: a aprovação da mudança de “narcotráfico” para “narcoterrorismo”, que abriria caminho para uma intervenção “legal” dos Estados Unidos ao Brasil e, no limite, colocaria em risco o resultado e a própria realização de eleições em 2026.
A manobra coincide com o fortalecimento do eixo soberano Brasil–China–BRICS. Para Trump, essa reconfiguração do sul global representa o seu pesadelo geopolítico. E para os herdeiros de Bolsonaro e do bolsonarismo — sem líder, sem candidato e sem projeto — a submissão ampla, geral e irrestrita aos Estados Unidos é o último abrigo.
Cerco como realidade
A lição é antiga, mas eficaz. Antes da guerra, vem o boato. Assim foi no Iraque, com as armas de destruição em massa; assim tentam fazer agora com a Venezuela, as drogas e o “terrorismo”. O perigo não é apenas uma intervenção militar, mas o regresso do velho colonialismo travestido de cruzada moral.
No meio do tabuleiro está o Brasil — segunda maior reserva mundial de terras raras, potência energética e país-chave para o equilíbrio do sul global. Quando Washington fala em “narcoterrorismo”, o que está em jogo não é a luta contra as drogas e seus traficantes ou terroristas. E, sim, a soberania e o direito de cada povo decidir o seu futuro sem o Big Stick apontado à cabeça.
O cavalo de Troia do “narcoterrorismo”
Ao rebater a narrativa de “narcoterrorismo”, importada de Washington pela extrema-direita, Lula fez mais do que uma defesa de princípios — reafirmou a soberania como cláusula pétrea da democracia brasileira.
Desde seu discurso na ONU, em setembro, o presidente tem alertado que a transformação do crime comum em “terrorismo” abre a porta para intervenções externas travestidas de combate ao tráfico. Foi uma resposta direta à nova doutrina de Donald Trump, que tenta reescrever leis hemisféricas para legitimar incursões militares sob o manto da guerra ao “narcoterrorismo”.
Em suas falas recentes, Lula lembrou que o Brasil tem instituições próprias, forças de segurança próprias e uma Constituição que não admite tutela estrangeira. Rechaçou “qualquer tentativa de ingerência disfarçada de parceria” e enfatizou que cooperação internacional não pode servir de cavalo de Troia para violar a autodeterminação dos povos.
Lula retoma o tema do narcoterrorismo
Ao comentar a chacina nas comunidades do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, Lula voltou ao tema, afirmando que “não se combate crime com extermínio, nem se constrói segurança copiando o modelo Bukele”, referindo-se ao modelo adotado pelo presidente Nayib Bukele, de El Salvador — que passou a ser imitado ou elogiado por setores da extrema-direita latino-americana — inclusive por Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro, comandante da chacina de 28 de outubro nas comunidades do Alemão e da Penha.
A ideia é simples: usar o discurso da “guerra ao crime” para justificar a militarização da política e a supressão de direitos. A referência a Bukele não foi casual. No mesmo período, figuras da extrema-direita brasileira passaram a repetir o vocabulário de Trump, classificando traficantes e moradores de favelas como “narcoterroristas”. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Guilherme Boulos, sintetiza a posição do governo em entrevista ao UOL:
“Quando o governador do Rio e outras figuras da extrema direita usam o termo ‘narcoterrorismo’, utilizado por Donald Trump, não por acaso, para justificar intervenções na América Latina, estão fazendo um jogo político que estimula o intervencionismo de potências estrangeiras. Isso é grave.”
O Planalto sabe que o perigo é geopolítico. O termo “narcoterrorismo”, uma vez adotado oficialmente, permite enquadrar países inteiros sob as novas doutrinas de “segurança hemisférica” elaboradas pelo Departamento da Guerra dos EUA. Por essa via, a retórica moral se converte em licença para intervir — e a América Latina volta a ser tratada como “zona de risco” sob tutela de Washington.
A retórica do medo
Ao substituir “narcotráfico” por “narcoterrorismo”, Trump e seus aliados latino-americanos travam uma guerra semântica que prepara o terreno para uma nova forma de intervenção — agora legalizada pelo discurso. É o mesmo expediente que precedeu as invasões no Oriente Médio e a guerra permanente contra um inimigo difuso e conveniente.
O que se insinua, sob o disfarce de combate ao crime, é a normalização da tutela norte-americana sobre o continente. A retórica do medo — drogas, terrorismo, comunismo — serve de cola ideológica para unir a extrema-direita hemisférica em torno do velho sonho de dependência.
Enquanto isso, o governo Lula tenta reafirmar uma lógica de soberania e autodeterminação, na contramão dessa gramática da submissão. A guerra que vem do norte, portanto, não é só a dos canhões e dos porta-aviões — é a guerra das narrativas, das palavras que tentam reescrever a realidade até torná-la justificável.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



