Brasil emite atestado de óbito em que se responsabiliza pela morte do pianista Tenório Júnior
Estado brasileiro reconhece assassinato de Tenório Júnior pela ditadura argentina em 1976
247 - Quase cinco décadas após o desaparecimento e a morte do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o Estado brasileiro reconheceu oficialmente o assassinato do músico durante a ditadura argentina. O reconhecimento se deu por meio da emissão de um novo atestado de óbito, que aponta a responsabilidade do próprio Estado brasileiro no contexto da repressão política que marcou o período.As informações foram reveladas em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, que acompanhou o processo de emissão do documento e o impacto do reconhecimento para a família do músico, assassinado em março de 1976, aos 34 anos, enquanto estava na Argentina a trabalho.
A certidão foi emitida pelo 4º Ofício do Gama, no Distrito Federal, a pedido da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Trata-se do primeiro atestado de óbito expedido pelo Brasil em nome de Tenório Jr., quase 50 anos após sua morte. No campo “Causa da Morte”, o documento registra: “Não natural violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Durante cerimônia realizada em Brasília, em dezembro de 2025, familiares receberam oficialmente o documento. A neta do músico, Sofia Cerqueira Borges, de 25 anos, falou sobre a longa espera da família pelo reconhecimento. “Eu sou a Sofia, sou neta do Tenório. Estou aqui com minha mãe, meus tios e minha prima. Meu avô foi morto há quase 50 anos na Argentina e há quase 50 anos minha família luta pelo reconhecimento dessa morte, por essa certidão”, afirmou.
Tenório Jr. teve seus restos mortais identificados recentemente pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), após décadas como desaparecido. O corpo havia sido encontrado em 1976, sem identificação, em uma área de matagal, e enterrado no Cemitério Municipal de Benavídez, na região de Tigre, na província de Buenos Aires. A identificação só foi possível após a comparação de impressões digitais, conforme revelou o Estadão em setembro deste ano.
Uma das filhas do músico, Margarida Cerqueira Borges, destacou o significado simbólico e jurídico do documento. “Finalmente, depois de 49 anos, recebemos a certidão de óbito de nosso pai, pianista, brasileiro, que estava a trabalho na Argentina e foi assassinado”, disse. Ela agradeceu à EAAF e à Comissão Especial, mas também criticou a postura histórica do Estado brasileiro. “Esperamos que a partir de agora tenhamos algum amparo do governo, que nunca nos procurou, nem para um pedido de desculpas”, afirmou.
O novo atestado atende a uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determinou a emissão de certidões de óbito para representantes de mortos e desaparecidos políticos listados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014. A responsabilização do Estado brasileiro, mesmo com o crime ocorrido em território argentino, está relacionada à cooperação repressiva entre as ditaduras do Cone Sul.
Segundo o jurista Pedro Dallari, ex-presidente da CNV, o caso se insere no contexto da Operação Condor. “A possível relação que a Comissão fez – e faria todo sentido – é com a chamada Operação Condor”, afirmou. Ele lembrou que o relatório da Comissão dedicou um capítulo específico às conexões internacionais da repressão, destacando inclusive o papel do Itamaraty durante o período.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania lançou, em 11 de dezembro, uma campanha pelos 50 anos da Operação Condor, citando o caso de Tenório Jr. como emblemático. De acordo com o governo, a operação foi formalizada em 1975, no Chile, e a Argentina passou a integrar oficialmente o esquema repressivo em março de 1976, poucos dias após o desaparecimento do músico brasileiro.
Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade Rubens Paiva, do Estado de São Paulo, explicou o alcance do novo documento. “Esse atestado de óbito emitido pela Justiça brasileira é o reconhecimento legal da morte do Tenório Jr. Mais ainda, mostra que o caso se transforma de pessoa desaparecida para uma vítima morta pelo Estado argentino, com o conhecimento do Estado brasileiro à época”, declarou. Para ele, embora o texto da certidão seja padronizado, “é uma formalidade que ajudará juridicamente a família aos trâmites legais”.
Tenório Jr. não tinha qualquer participação política, fato reiterado por familiares. Sofia Borges ressaltou esse ponto durante o evento em Brasília. “Acho que é importante pontuar, para lembrar que em um Estado autoritário o alvo da violência não são somente opositores políticos, é o povo”, disse. Ela acrescentou que a luta por memória, verdade e justiça vai além da reparação familiar. “É também fundamental para a gente ousar sonhar com um país onde as nossas vidas possam ser pautadas pela liberdade, não pela violência”, afirmou.
Casado desde 1967 com Carmen, Tenório deixou cinco filhos: Elisa, Francisco, Margarida, João Paulo e Leonardo. Dois deles já faleceram. Leonardo nasceu menos de um mês após o desaparecimento do pai, quando Carmen estava grávida de oito meses. Ela criou sozinha os filhos e morreu em 2019, sem ver o reconhecimento oficial da morte do marido.
No momento do desaparecimento, Tenório Jr. acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho em uma turnê musical que havia começado no Uruguai. Também integravam a viagem o baterista Mutinho e o baixista Azeitona. Presentes enviados da Argentina chegaram às mãos dos filhos, marcando de forma dolorosa o último contato do músico com a família. O pai nunca voltou, mas, quase 50 anos depois, o Estado brasileiro finalmente reconheceu sua responsabilidade histórica pelo crime.

