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João Cezar de Castro Rocha: “Escolas militares são uma fraude e terreno fértil para o fascismo"

Professor denuncia militarização do cotidiano escolar, ausência de projeto pedagógico e uso das cívico-militares como laboratório da extrema direita

João Cezar de Castro Rocha: “Escolas militares são uma fraude e terreno fértil para o fascismo" (Foto: Divulgação )

247 - Para João Cezar de Castro Rocha, o modelo de escolas cívico-militares instalado em vários estados brasileiros não passa de uma operação ideológica travestida de solução para a educação pública. Ele afirma que, do ponto de vista didático, essas instituições não oferecem avanço real de aprendizagem e funcionam, na prática, como espaços de disciplinamento autoritário e de naturalização da violência. 

A estrutura da escola cívico-militar, do ponto de vista pedagógico, é uma fraude, porque não existe rigorosamente nada que seja importante”, resume.As críticas foram feitas em entrevista ao Boa Noite 247. Na conversa, o professor detalha por que considera o modelo um instrumento de avanço da extrema direita e um elemento central de um projeto mais amplo de “retrocesso civilizacional” no Brasil.

Logo ao responder sobre as imagens de violência dentro de uma escola cívico-militar, João Cezar é taxativo: “O que existe é uma militarização do cotidiano dos alunos. É um moralismo. Nem sequer é uma moralização, é o moralismo que não faz o menor sentido e é uma violência e é uma espécie de legitimação do bully em todos os níveis”. Ele lembra que não se trata de casos isolados: “Não somente nós vimos cenas de professores batendo em alunos, mas espancando alunos, como toda a gramática da escola cívico-militar é absolutamente fascista”.

O professor chama atenção para a expansão desse modelo em estados governados por forças conservadoras. “É muito preocupante porque em estados como Paraná as escolas cívico-militares são dominantes”, diz. Em seguida, faz um recorte político da região: “Aliás, o Paraná é um estado muito peculiar, porque embora ele não seja tão visível e tão eloquente quanto Santa Catarina, do ponto de vista das instituições, o fascismo avançou muito mais no Paraná do que em Santa Catarina”. 

Como exemplo, ele cita o papel da “República de Curitiba”: “Pensemos que bem ou mal foi no Paraná que surgiu a República de Curitiba e o conluio entre um procurador e um juiz de primeira instância que levaram o Brasil à beira do colapso”.Para João Cezar, o verdadeiro conteúdo dessas escolas não é pedagógico, e sim ideológico. “O que realmente é preocupante é isso, é que não há nenhuma proposta pedagógica”, repete. 

Em seu lugar, segundo ele, se impõe “um tipo de mentalidade preconceituosa, intolerante, incapaz de lidar com autoridade e que reforça todos os preconceitos característicos da sociedade brasileira”. A escola cívico-militar, insiste, é “tema muito grave” porque atua na “cabecinha das crianças”, preparando-as para aceitar hierarquias autoritárias como algo natural.O professor recorda que o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou de forma crítica em relação a esse modelo. 

Se eu não me engano, a primeira palavra do Supremo foi desfavorável a essa implantação das escolas cívico-militares, mas alguns estados, como o estado de São Paulo, desconsideraram a indicação do Supremo e começaram a implementar escolas cívico-militares, o mesmo em Santa Catarina e no Paraná”, afirma. A desobediência ao espírito da decisão, na leitura dele, mostra o grau de enraizamento político da agenda militarizante.

Para explicar a gravidade do que está em curso, João Cezar faz um paralelo histórico com o pós-Segunda Guerra Mundial, a partir de um texto clássico de Antonio Candido, “Direito à literatura”. Ele lembra que, em 1988, o crítico via os direitos humanos como um consenso civilizatório irreversível: “Os direitos humanos hoje são aceitos em todo mundo como direitos inquestionáveis e ninguém mais tem coragem de abertamente defender pena de morte, tortura, autoritarismo em lugar de direitos humanos e democracia”, resume, citando a síntese daquele momento. 

Hoje, diz o professor, o quadro é o oposto: “Nós tivemos um retrocesso civilizacional notável”.Esse retrocesso aparece, segundo ele, na reconfiguração do discurso da extrema direita, que opõe “direitos humanos” a “humanos direitos”. 

Os humanos direitos são aqueles humanos que não cometem crime. É isso que quer dizer humano”, explica, ironizando o velho bordão da “gente de bem”. Ao negar a universalidade dos direitos, esse discurso legitima práticas seletivas de violência estatal, criminalização da pobreza e naturalização de abusos — terreno em que as escolas cívico-militares operam como laboratório simbólico. Debates recentes sobre fascismo histórico e extrema direita contemporânea, como os organizados por pesquisadores como Guilherme Casarões, também apontam para essa combinação de autoritarismo, moralismo e instrumentalização da educação. 

João Cezar descreve ainda um cenário parlamentar que qualifica como “teatro dos horrores”. “A Câmara hoje no Brasil é um exemplo de teratologia. O que que é Paulo Bilinski? Tem um deputado que se chama Capitão Caveira, tem um delegado Palumbo, tem o coronel Crisóstomo que grita o tempo todo, tem o Gilvan da Federal que anda sempre envelopado numa bandeira do Brasil. É uma coisa, é teratológico, é um teatro dos horrores”, critica. 

Para ele, a proliferação de figuras que exploram símbolos militares e patrióticos está diretamente ligada ao ambiente cultural que essas escolas ajudam a formar.Na visão do professor, o objetivo estratégico é mais amplo: “Nós enfrentamos de fato uma ameaça muito séria de um retrocesso ao século XIX. É esse o projeto de Trump e companhia. É um retrocesso ao século XIX”, afirma, ao situar o Brasil num tabuleiro geopolítico em que a extrema direita tenta recolonizar regiões inteiras. 

Ele lembra que “o que os Estados Unidos desejam desesperadamente é voltar à política do big stick, à doutrina Monroe e tornar a América Latina um quintal para os Estados Unidos”, e considera o Brasil “o fiel da balança” nesse processo. Nessa mesma linha, analistas como João Santana têm chamado atenção para o fato de que a extrema direita cresce ocupando o vazio deixado por uma esquerda que perdeu capacidade de comunicação e mobilização, inclusive na disputa por corações e mentes no campo educacional. 

Ao final, João Cezar insiste que a discussão sobre escolas cívico-militares não pode ser tratada como detalhe administrativo ou mera escolha de modelo de gestão. Em sua leitura, trata-se de uma frente decisiva da batalha política contemporânea, na qual se decide se a escola pública brasileira será um espaço de formação cidadã e crítica ou um instrumento de adestramento autoritário, preparado para alimentar, desde cedo, um projeto de extrema direita que se pretende duradouro. Assista: 

 

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