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Ideias

Vítimas colaterais do apoio europeu à Ucrânia

A guerra na Europa relega o Sul Global

Bandeiras da Ucrânia e da Rússia (Foto: Reuters)
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Por Sergio Ferrari, de Berna, Suíça - Mais de dois anos depois de ter começado, o confronto Rússia-Ucrânia continua a produzir efeitos colaterais terríveis. O aumento para recordes máximos nos preços dos cereais, a crise energética devido ao aumento explosivo de certos combustíveis e a inflação descontrolada em várias regiões são algumas das consequências negativas do conflito. A tudo isso soma-se a queda abrupta da cooperação para o desenvolvimento do Sul.

O exemplo do “mal exemplo” - Na segunda semana de abril, o Conselho Federal suíço, um colegiado de sete membros, decidiu alocar um pacote de 5 bilhões de francos (US$ 5,5 bilhões) para assistência à Ucrânia, que será distribuído nos próximos 12 anos.

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Quase ao mesmo tempo, o mesmo Conselho Federal convocou para os dias 15 e 16 de junho, no Bürgenstock Resort, uma Conferência de Paz de alto nível com o objetivo de construir e garantir uma "paz abrangente, justa e duradoura". Nesse complexo hoteleiro de luxo de uma empresa qatari no Lago dos Quatro Cantões, perto de Lucerna, a Suíça está empenhada em reunir importantes personalidades políticas mundiais. No entanto, essa iniciativa já começa enfraquecida porque a Rússia antecipou que não participará, tendo como consequência a impossibilidade de que, com essa reunião se possa chegar a um resultado imediato de fim do conflito.

O pacote espetacular de ajuda oficial suíça para fortalecer a cooperação com a Ucrânia criou mal-estar entre Organizações Não Governamentais e parte da liderança política nacional. De fato, a partir de 2025, a Ucrânia receberá mais recursos do que todos os programas bilaterais que a Agência Suíça para o Desenvolvimento e Cooperação (Cosude - SDC, por sua sigla em inglês) aloca a mais de 20 nações da África subsaariana, uma das regiões historicamente priorizadas pela Confederação Suíça. De acordo com o governo suíço, a ajuda à Ucrânia entre 2025 e 2028, no valor de 1,5 bilhão de francos (US$ 1,65 bilhão), será totalmente financiada pelo orçamento destinado à cooperação internacional. Embora ainda não tenha sido confirmado de onde virão os US$ 3,5 bilhões restantes, existe a possibilidade de que venham da mesma rubrica orçamentária.

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Aumentar a cooperação sem castigar os países do Sul - As vozes críticas multiplicaram-se nos últimos dias. Como afirma a Alliance Sud (Aliança Sul), uma plataforma das mais importantes ONGs suíças para a cooperação com o Sul Global, "ninguém contesta que recursos substanciais serão necessários para a reconstrução da Ucrânia e que a Suíça deve fazer uma contribuição financeira significativa para essa ajuda humanitária e para a reconstrução". No entanto, esclarece a plataforma, o governo desconhece a vontade de amplos setores da sociedade civil que participaram durante meses da consulta sobre cooperação internacional. De fato, 75% das respostas sobre esse tema para o período 2025-2028 indicaram que a ajuda à Ucrânia não deve ser fornecida em detrimento de outras regiões, como a África Subsaariana e o Médio Oriente. Cinco dos sete partidos políticos representados no parlamento, bem como as autoridades de nove Cantões (Estados ou Províncias), concordaram com essa opinião.

A Aliança Sul observou que apenas três das 215 respostas (pouco mais de 1%) afirmaram explicitamente a continuação da ajuda à Ucrânia, mesmo que isso signifique reduzir a assistência financeira a outras regiões (24% não se pronunciaram sobre isso). A Comissão Consultiva de Cooperação Internacional do Conselho Federal também expressou sua oposição ao financiamento de Kiev em detrimento dos mais necessitados em outras regiões do mundo.

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Para a Aliança Sul, a decisão de investir 1,5 bilhão de francos suíços na Ucrânia a partir do orçamento de 2025-2028 para a Cooperação Internacional sem aumentar o fundo significa "ignorar completamente os resultados dessa consulta".

Resta esperar que o próprio Parlamento corrija o que a Aliança Sul considera uma "decisão errada" do Governo. Nas sessões de setembro e dezembro deste ano, o Parlamento suíço corrigirá ou ratificará o que claramente soa como um erro de grandes proporções do governo. Andreas Missbach, diretor da Aliança Sul, defende que a excelente cooperação suíça para o desenvolvimento não deve ser afetada por essa decisão. O Parlamento, acrescenta, deve respeitar a vontade dos cidadãos (https://www.alliancesud.ch/fr/la-reconstruction-de-lukraine-ruine-une-cooperation-au-developpement-qui-fait-ses-preuves).

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Na mesma linha, Melchior Lengsfeld, diretor da Helvetas, uma das mais importantes ONGs suíças na área de cooperação internacional, com projetos em 35 países, principalmente no Sul e no Leste Europeu, acaba de pronunciar-se. Em declarações recentes à rádio suíça francesa, Lengsfeld não negou apoio humanitário e apoio à reconstrução da Ucrânia, mas esclareceu que "isso não pode ser feito em detrimento da cooperação com os países do Sul, como está delineado no momento". O povo suíço, acrescentou, é extremamente generoso, não só em situações de crise e urgências, mas também na luta contra a fome no mundo. E também nas sondagens, onde se pronuncia a favor de um aumento da cooperação para o desenvolvimento (https://www.rts.ch/audio-podcast/2024/audio/l-invite-de-la-matinale-melchior-lengsfeld-directeur-de-l-ong-helvetas-28457681.html).

Mais cooperação, não mais gastos militares - Uma pesquisa do Centro para o Desenvolvimento e Cooperação (NADEL), da prestigiosa Universidade de Zurique, mostra que a maioria das respostas coincide com a necessidade de priorizar a cooperação para o desenvolvimento, particularmente no Sul, em vez de aumentos adicionais para o exército e para os gastos militares e militares.

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Apesar dos conflitos globais e das incertezas econômicas, a pesquisa do NADEL deixa claro que a preocupação da sociedade suíça com a pobreza global continua tão significativa quanto constante, como expressado por 65% dos entrevistados. Além disso, observa que 72% deles estão cientes de que mais da metade da população mundial vive com menos de US$ 10 por dia. Com isso em mente, 58% da população suíça apoia um aumento no financiamento para a cooperação (30% querem manter os níveis atuais). Em relação aos níveis de gastos militares, 26% apoiam um aumento, enquanto 40% são a favor de não mudar a situação até o momento (https://nadel.ethz.ch/swiss-panel/2023.html).

Números inflacionados - Na segunda semana de abril, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne 34 países em desenvolvimento de médio e alto nível, publicou seu Relatório de Cooperação Internacional 2023. De acordo com o relatório, a Suíça, com míseros 0,43% do Produto Interno Bruto alocado a esse item, está longe da meta de 0,7% proposta como meta internacional (https://www.oecd.org/fr/presse/augmentation-de-l-aide-publique-au-developpement-en-2023-avec-un-soutien-accru-a-l-ukraine-et-aux-besoins-humanitaires.htm).

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O relatório também ilustra que o aparente aumento da cooperação oficial suíça para o desenvolvimento se deve ao custo adicional de absorver humanamente um número significativo de refugiados ucranianos. Esses números podem ser enganadores: embora a Suíça tenha conseguido manter os seus níveis oficiais de cooperação, a sua atual ajuda adicional aos refugiados ucranianos não tem qualquer efeito real na política de desenvolvimento nem promove a redução da pobreza e das desigualdades no Sul Global.

Nesse contexto, Andreas Missbach defende que "é preciso mais solidariedade com as pessoas que vivem em pobreza extrema e que correm o risco de serem abandonadas". E insiste que "a Suíça deve cumprir a meta das Nações Unidas com a qual se comprometeu e dedicar 0,7% de sua renda nacional bruta ao financiamento do desenvolvimento". Missbach conclui que é escandaloso que, apesar da dívida pública muito baixa da Confederação Suíça, "o dinheiro esteja sendo economizado a custas dos mais necessitados".

Para contrariar essa tendência de descida do orçamento oficial para a cooperação para o desenvolvimento, a Aliança Sul e várias personalidades nacionais acabam de lançar a campanha "#SolidairesNow (Solidariedade Agora) Vamos Fortalecer a Cooperação para o Desenvolvimento!" (https://www.soyons-solidaires-maintenant.ch/).

Essa iniciativa aponta que, de acordo com os objetivos do Conselho Federal, o percentual orçamentário para cooperação cai para 0,36%, o que o leva a se pronunciar enfaticamente: "Uma vergonha! O nosso país tem suficiente margem de manobra financeira. Só a concepção extrema do freio da dívida impede uma Suíça solidária."

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia continua a produzir ondas, para não dizer verdadeiros tsunamis. Para a Suíça e a Europa Ocidental, aliados incondicionais de Volodymyr Zelensky, a Ucrânia se tornou um buraco negro de financiamento "a fundo perdido". A guerra beneficia a grande indústria bélica, não necessariamente as nações ou seus orçamentos, nem a sociedade civil e a cooperação em particular, muito menos as populações mais marginalizadas do planeta. Não podemos ignorar as muitas "vítimas colaterais" que esse conflito está gerando tanto nas nações do Sul Global como nos sectores mais vulneráveis da própria Europa. E a grande fatura da reconstrução da Ucrânia do pós-guerra, que ainda não começou a ser paga, recairá, fundamentalmente, sobre o contribuinte europeu, que verá seus impostos explodirem e sofrerão com os cortes sociais ainda mais significativos do que os atuais.

Tradução: Rose Lima

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