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Daniel Samam

Daniel Samam é Músico, Educador e Editor do Blog de Canhota. Está Coordenador do Núcleo Celso Furtado (PT-RJ), está membro do Instituto Casa Grande (ICG) e está membro do Coletivo Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores (PT).

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A armadilha da antipolítica: por que a esquerda não pode abrir mão do Parlamento?

O "inimigo" não é a Câmara ou o Senado em si, mas sim a maioria reacionária que hoje ocupa aquelas cadeiras. Confundir o ocupante com o cargo é um erro tático

Câmara dos Deputados, congresso Nacional (Foto: agência Brasil)

A manifestação do último domingo (14) em Copacabana e em diversas capitais do país trouxe um alento necessário: as ruas voltaram a pulsar. A resposta contra projetos de lei que representam retrocessos civilizatórios, como a tal "dosimetria" punitiva ou ataques aos direitos sociais, provou que a sociedade civil está viva e atenta. No entanto, em meio aos cartazes e gritos de ordem, surge um ruído perigoso que precisamos, com urgência e honestidade intelectual, debater.

Quando gritamos que o "Congresso é inimigo do povo", estamos, sem querer, alimentando o monstro que queremos combater.

A história política do Brasil e da sociologia nos ensina que o discurso de "negação da política" ou a destruição moral das instituições representativas é, tradicionalmente, o pasto onde a extrema-direita se alimenta. Foi desmoralizando o Parlamento que se abriram as portas para o golpe de 1964 e, mais recentemente, para a ascensão do bolsonarismo.

Dizer que o Congresso, como instituição, é o inimigo, flerta com a ideia de que não precisamos dele. E se não precisamos do Parlamento, o que sobra? Sobra o arbítrio, a força bruta, o executivo imperial. Para a classe trabalhadora, para os desprotegidos e para o projeto de um Brasil soberano e desenvolvido, a ausência de um legislativo forte é fatal. O "inimigo" não é a Câmara ou o Senado em si, mas sim a maioria reacionária que hoje ocupa aquelas cadeiras. Confundir o ocupante com o cargo é um erro tático grave.

Na teoria revolucionária clássica (pense na Rússia de 1917), "bancar o antissistema" faz sentido quando você tem estruturas paralelas prontas para substituir o Estado burguês (como eram os Sovietes).

Olhemos para o Brasil de 2024/2025. Onde estão essas estruturas? Os sindicatos estão se reconstruindo, os movimentos sociais lutam bravamente, mas não existe, hoje, nenhuma organização de esquerda projetando substituir o Congresso Nacional por uma assembleia popular direta amanhã de manhã.

Gramsci nos ensinaria que estamos em uma "Guerra de Posição". É uma luta lenta, de ocupação de espaços, de disputa cultural e institucional. Não estamos num momento de ruptura revolucionária, ou seja, a "Guerra de Movimento". Agir como se estivéssemos em uma revolução, quando na verdade estamos tentando salvar a democracia liberal de seus algozes fascistas, é um erro de cálculo que pode nos isolar.

Para construirmos um projeto nacional de desenvolvimento, como sonhavam Celso Furtado e Darcy Ribeiro, precisamos de leis. Precisamos de orçamento. Precisamos de Estado. E não se faz isso sem o Legislativo.

O "recado duro" das ruas foi dado e foi vitorioso. Mas a esquerda precisa ter a inteligência de não cair na armadilha da antipolítica. O Congresso atual é, sim, majoritariamente hostil aos interesses populares. Mas a resposta a isso é mais política, mais disputa e mais consciência de classe, e não a negação da única arena onde podemos transformar as demandas das ruas em direitos permanentes.

Não vamos entregar a chave da casa do povo para quem quer incendiá-la. Vamos, em vez disso, lutar para pegar as chaves de volta.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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