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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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A política externa de Trump 2.0: diplomacia desmontada, poder corroído

Crise no Departamento de Estado expõe a estratégia do atual presidente dos Estados Unidos de enfraquecer a diplomacia profissional

Presidente dos EUA, Donald Trump (Foto: Reuters)

 A informação não partiu da Casa Branca nem do Departamento de Estado. Veio da imprensa. Foi revelada pelo The New York Times, na segunda-feira (22/12), em reportagem assinada por Edward Wong, e confirmada por fontes ouvidas pelo jornalista: o governo de Donald Trump 2.0 ordenou que cerca de 30 embaixadores dos Estados Unidos — diplomatas de carreira, confirmados pelo Senado e ainda em pleno mandato — retornassem a Washington em poucas semanas. Muitos foram avisados abruptamente, por telefone, sem explicação formal e sem qualquer anúncio público. O sindicato do Serviço Exterior classificou a medida como inédita desde a criação da diplomacia profissional americana.

 Antecedentes de um desmonte anunciado

 Os antecedentes desse desfecho estão numa inflexão deliberada iniciada ainda nos primeiros meses do segundo mandato. A política externa passou a ser conduzida como extensão da disputa doméstica, e não como política pública de longo prazo. Ao atacar o que chama de “deep state”, Donald Trump não mirou um complô oculto, mas o próprio Estado profissional americano: diplomatas de carreira, técnicos civis e servidores especializados cuja função é assegurar legalidade, previsibilidade e continuidade institucional. Esse núcleo burocrático, historicamente responsável por amortecer impulsos personalistas e preservar canais de negociação, foi progressivamente deslegitimado, esvaziado e tratado como obstáculo político. Decisões passaram a privilegiar lealdade pessoal em detrimento da expertise, e a mediação técnica cedeu lugar à confrontação ideológica. A convocação em massa de embaixadores, portanto, não inaugura a ruptura; ela a explicita como ato final de um processo que substituiu a diplomacia profissional por uma política externa personalista, avessa à institucionalidade e estruturalmente incapaz de sustentar influência duradoura num mundo multipolar.

 O retorno do unilateralismo bruto

 Desde janeiro de 2025, Trump deixou claro que pretendia aprofundar os pilares mais agressivos de sua política externa original: unilateralismo, desprezo por organismos multilaterais, desconfiança em relação a aliados tradicionais e personalização extrema das decisões.

 A diferença em relação ao primeiro mandato é decisiva. Em 2017–2021, ainda existiam amortecedores institucionais — diplomatas experientes, militares de alto escalão e uma burocracia civil relativamente coesa — capazes de conter impulsos mais destrutivos. No Trump 2.0, esses freios foram deliberadamente enfraquecidos.

 A transformação do Departamento de Estado em alvo

 É nesse contexto que se insere a chamada “reorganização” do Departamento de Estado. Sob a liderança do secretário Marco Rubio, o órgão foi submetido a cortes orçamentários severos, redução drástica da ajuda externa e demissões em larga escala. Em julho, cerca de 1.300 funcionários foram dispensados, incluindo centenas de diplomatas — muitos deles em Washington apenas temporariamente, em período de rotação antes de novas missões no exterior.

 Formalmente, tratava-se de racionalização administrativa. Na prática, foi um expurgo seletivo que atingiu justamente quadros experientes, áreas voltadas à cooperação internacional, direitos humanos, clima, desenvolvimento e mediação de conflitos. Escritórios inteiros foram extintos. Funções estratégicas foram esvaziadas. A mensagem interna era inequívoca: a diplomacia profissional não é prioridade.

 Pesquisas internas do sindicato dos diplomatas revelaram um colapso quase total. Desde janeiro, 98% dos entrevistados afirmam que o ambiente de trabalho piorou; 86% dizem que ficou mais difícil implementar a política externa americana; apenas 1% percebeu alguma melhora. Não se trata de insatisfação pontual, mas de uma crise estrutural.

A diplomacia como extensão da agenda “America First

 Outro antecedente fundamental é a redefinição explícita do papel do embaixador. Para o governo Trump, embaixadores não são representantes do Estado americano, mas representantes pessoais do presidente. Essa distinção, aparentemente sutil, rompe com a noção de continuidade institucional e transforma postos diplomáticos em cargos de confiança política.

 Nesse modelo, diplomatas de carreira tornam-se suspeitos por definição. Sua formação técnica, seu compromisso com normas internacionais e sua disposição para negociar são vistos como fraqueza ou traição. O ideal passa a ser o embaixador ideologicamente alinhado, disposto a repetir slogans e confrontar governos anfitriões em nome da retórica trumpista.

 Foi essa lógica que preparou o terreno para a demissão em massa. Ao convocar de volta quase 30 embaixadores confirmados pelo Senado e ainda em pleno mandato, Trump apenas levou às últimas consequências uma visão já anunciada: a diplomacia profissional não tem lugar no seu projeto de poder.

Diversidade como dano colateral ou alvo deliberado?

 Há ainda um antecedente menos discutido, mas central: o retrocesso deliberado na diversidade do serviço exterior. Ao longo de 2025, diplomatas de alto escalão relataram que mulheres e pessoas de cor foram desproporcionalmente afetadas por afastamentos, rebaixamentos e cancelamentos de nomeações previamente acordadas. Em determinado momento, cerca de uma dúzia de diplomatas que assumiriam postos-chave como vice-chefes de missão tiveram suas designações revogadas — a maioria pertencente a esses grupos.

 Isso não é acidental. A política externa do Trump 2.0 dialoga diretamente com a guerra cultural doméstica. Diversidade, inclusão e representatividade são tratadas como agendas “ideológicas” a serem combatidas. O resultado é uma diplomacia mais homogênea, menos plural e menos capaz de dialogar com um mundo diverso e complexo.

O vácuo estratégico e a ascensão de outros atores

 Enquanto os Estados Unidos desmontam sua rede diplomática, outros países avançam. A China, em particular, já ultrapassou Washington em número de missões diplomáticas no mundo. Mantém embaixadas estáveis, rotatividade planejada de embaixadores e uma estratégia de longo prazo voltada à presença institucional, especialmente na África, na Ásia e na América Latina.

 O contraste não poderia ser mais eloquente. Em regiões como a África Subsaariana — onde cerca de uma dúzia de embaixadores americanos foi convocada de volta — Pequim amplia investimentos, acordos de cooperação e presença política. O esvaziamento das embaixadas americanas cria um vácuo que não permanece vazio por muito tempo.

O fim do filme: diplomacia desmontada

 É nesse cenário que chegamos ao desfecho. A convocação em massa de embaixadores não é um erro administrativo nem um excesso pontual. É a culminação de uma política externa que despreza instituições, desconfia da expertise e confunde poder com imposição.

 Trump afirma querer “resolver conflitos por meio da diplomacia”. Mas diplomacia não se faz sem diplomatas, sem embaixadas fortalecidas, sem canais estáveis de diálogo. Ao desmontar esses instrumentos, os Estados Unidos reduzem sua capacidade real de influência, seu Soft Power, justamente em um mundo cada vez mais multipolar, no qual ameaças unilaterais têm eficácia limitada.

 O segundo mandato de Trump marca, assim, uma inflexão histórica. Pela primeira vez em décadas, a principal potência do sistema internacional parece abdicar conscientemente das ferramentas que sustentaram sua hegemonia. O resultado não é uma América mais forte, mas uma América mais ruidosa, mais isolada e estruturalmente menos capaz de moldar a ordem global.

 O “fim do filme” é revelador porque os antecedentes estavam todos lá. O desmonte não foi improvisado. Foi anunciado, executado passo a passo e agora se explicita diante do mundo. A diplomacia americana, antes um dos pilares do poder dos Estados Unidos, torna-se vítima colateral — e talvez central — de um projeto que confunde liderança global com lealdade pessoal e política externa com guerra cultural.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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