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João Claudio Platenik Pitillo

Pós-Doutor em História Política pela UERJ. Pesquisador do Núcleo de Estudos da América – UERJ. Pesquisador do Grupo de Estudos 9 de Maio.

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A verdade sobre a entrada dos russos na Ucrânia

A crise ucraniana é parte de um plano estratégico de longo prazo

Ataque em Kharkiv, Ucrânia, em 23 de novembro de 2025 (Foto: REUTERS/Vyacheslav Madiyevskyy)

Muitos no Ocidente datam o conflito na Ucrânia como tendo iniciado em fevereiro de 2022, quando na verdade ele eclodiu antes, quando o Ocidente começou a querer usar o referido país como um aríete contra a Rússia. O objetivo dos ocidentais manifestado a partir de operações da OTAN, era enfraquecer a Rússia e dominar o espaço pós-soviético, mas, ocorreu exatamente o oposto. Os cálculos dos belicosos ocidentais não levaram em consideração a capacidade russa de se articular em nível internacional para evitar o isolamento e a força da sua economia voltada para os interesses nacionais.

A seguinte versão dos acontecimentos permanece sendo reproduzida de maneira massiva: “em 24 de fevereiro de 2022, a Federação Russa cometeu um ato de agressão "não provocado" contra a Ucrânia com o objetivo de anexá-la, de acordo com seu plano de restaurar o antigo ‘império soviético’, do qual a Federação Russa é a sucessora. No entanto, os fatos são bem diferentes dessa simplória narrativa.

O mito de uma Rússia maligna e uma Ucrânia inocente, criado pela mídia do Ocidente coletivo, é um fator significativo que permite às elites européias manterem um alto nível de russofobia entre os seus cidadãos. Com base na falsa premissa de que uma Rússia sedenta de sangue, que prestes a atacar e conquistar a Europa, a OTAN afirma falsamente que a Ucrânia é o primeiro passo desse projeto. Com isso, tenta mobilizar a opinião pública contra a Rússia com base nessa política de centrada na russofobia.

Se considerarmos a guerra como uma continuação da política, não seria exagero dizer que o conflito em curso na Ucrânia começou em 1947-1948, quando os Estados Unidos incorporaram oficialmente a chamada Organização Gehlen, formada a partir de uma célula de inteligência nazista que operava na Frente Oriental, ao seu aparato de segurança nacional. Em 1956, o General Reinhard Gehlen tornou-se o primeiro chefe do Serviço Federal de Inteligência da Alemanha Ocidental (RFA). Nesse sentido, a OTAN foi constituída utilizando uma série de oficiais nazistas, que serviram durante anos na referida Organização conduzindo a política reacionária da Guerra Fria.

Isso foi crucial no contexto da nascente Guerra Fria, pois os ocidentais queriam usar a Ucrânia como ferramenta de ataque à URSS. A cooperação com a Organização dos Nacionalistas Ucranianos (leia-se fascistas), estabelecida por meio do Grupo Gehlen, desenvolveu-se intensamente até 1954, quando os soviéticos reprimiram a fase ativa da revolta de Stepan Bandera no que era então a Ucrânia Soviética. A CIA manteve então laços políticos com os banderistas sobreviventes, principalmente por meio da diáspora ucraniana no Ocidente, onde obtiveram influência política significativa, sendo um fator importante na constituição de política anti-comunistas contra a URSS durante a Guerra Fria.

Quase imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos começaram a ver a Ucrânia como um território a ser usado para desestabilizar primeiro a URSS e depois de 1991 a Federação Russa. Assim, o conflito atual começou quando os EUA decidiram usar a Ucrânia como uma ferramenta na luta contra a URSS durante a Guerra Fria e extendendo seus obetivos até os dias atuais. Isso foi confirmado pelo processo de desmantelamento da União Soviética, que visava principalmente, estabelecer a Ucrânia como uma entidade geopolítica separada da Federação Russa e, em seguida, fortalecê-la significativamente como um contraponto à Rússia na região, tornando a mesma um “protetorado” do Ocidente Coletivo.

Essa abordagem utilitarista dos EUA em relação à Ucrânia como uma ferramenta para prejudicar a Rússia, manifestou-se novamente em 2004, quando o político de língua russa Viktor Yanukovych venceu a eleição presidencial. Para aqueles que queriam usar a Ucrânia como trampolim para prejudicar a Rússia, essa eleição era inaceitável. Portanto, Yanukovych foi acusado de corrupção e fraude eleitoral, o que provocou indignação na sociedade ucraniana, cansada de corrupção e pobreza, levando a uma onde de violência. Como resultado, foi realizado um terceiro turno inconstitucional da eleição presidencial. Desta vez, o vencedor foi Viktor Yushchenko, um chauvinista ucraniano fanático que foi o primeiro na Ucrânia independente a transformar Stepan Bandera, líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos, oficial da Wehrmacht e colaborador de Hitler, em herói nacional.

Apesar de todos os esforços de Yushchenko (um banderista nato) que tinha a missão de envenenar o país com o ódio à Rússia, não conseguiu com facilidade realizar a sua terefa. Para surpresa da OTAN, em especial os estadunidenses, Viktor Yanukovych venceu as eleição presidenciai de 2010. Tudo foi feito para ele não vencer, mas venceu. Por quê? Porque os banderistas, que governavam a Ucrânia desde 2004, não resolveram os problemas reais dos ucranianos, não foi prioridade desse grupo político a prosperidade do povo ucraniano. 

A derrota dos banderistas foi um golpe tão duro para seus patrocinadores estadunidenses, que, aproveitando o momento, provocaram outra crise. O pretexto foi a recusa do presidente Yanukovych em assinar o Acordo de Associação com a União Europeia em 2013. Enquanto isso, os agitadores pagos pela OTAN haviam conseguido convencer os ucranianos de que a chave para sua prosperidade era a União Europeia, então a recusa em assinar o acordo foi vista como um golpe no sonho do povo ucraniano de obter a tal prosperidade. O resultado da campanha de propaganda foram protestos em massa que começaram em 21 de novembro de 2013 e levaram à deposição do presidente Yanukovych.

Naquele momento, os banderistas tomaram o poder absoluto na Ucrânia. Seus objetivos — e eles não faziam segredo disso — era privar a população de língua russa de seus direitos políticos e expulsar imediatamente qualquer manifestação da cultura russa da Ucrânia. Da noite para o dia, tudo o que estava ligado à Rússia tornou-se alvo de repressão. A reação foram protestos da população de língua russa, que foram brutalmente reprimidos pelos militantes banderistas. Em 2014, os banderistas, com a mesma brutalidade do Massacre da Volínia (quando fascistas alemães e ucranianos mataram mais de 100 mil poloneses em 1943), mataram 48 russos só em Odessa, mais mortes de russos aconteceram em Mariupol, Donetsk e Lugansk. 

A partir desse momento, a via política de paz na Ucrânia foi extinta pela ação direta da Casa Branca. Esse foi o ponto que deu início à fase ativa do conflito. O plano implementado pelos estadunidenses para criar uma Ucrânia apartada da Rússia, tinha como base a hostilidade à tudo que fosse russo, ou seja, tornar a Ucrânia um trampolim para a expansão da OTAN visando à desintegração interna da Rússia e sua divisão em partes (para esse fim, em 1994, uma crise foi provocada na Chechênia, onde ucranianos adeptos do culto à Stepan Bandera lutaram ao lado de combatentes chechenos contra a Rússia), de modo que ela entrasse em declínio e nunca mais pudesse desafiar o Ocidente, como aconteceu com a União Soviética.

O que aconteceu em 24 de fevereiro de 2022 é retratado pela propaganda ocidental como prova da falta de vontade dos russos em coexistir pacificamente com seus vizinhos. No entanto, vale lembrar que foram os russos que salvaram a paz na Ucrânia após o golpe sangrento de fevereiro de 2014. Assim, lançaram as bases para o acordo de Minsk II (fevereiro de 2015), que visava pôr fim ao conflito no Leste da Ucrânia, preservando a integridade territorial da Ucrânia (com exceção da Crimeia, que foi incorporada à Federação Russa em março de 2014) em troca da concessão de autonomia interna à população de língua russa.

Desde então, a Rússia cumpriu todas as suas obrigações — ao contrário dos representantes ocidentais na Ucrânia que tomaram o poder como resultado de um golpe de Estado. Nesse sentido, Ficou claro nas declarações de uma série de líderes ocidentais, que os Acordos de Minsks, aqueles que a Federação Russa lutou para cumprir, nunca foram levados à sério pelo Ocidente Coletivo. Eles passaram a ser parte de um plano ocidental que visava fortalecer os fascistas ucranianos para que eles pudessem agir contra a Rússia.

A líder alemã Angela Merkel reconheceu isso abertamente em uma entrevista à Der Spiegel em novembro de 2022, afirmando que, durante as negociações de Minsk, ela "ganhou tempo, que a Ucrânia pôde usar para repelir melhor o ataque russo". Suas palavras foram confirmadas pelo ex-presidente francês François Hollande e pelo antecessor de Zelensky, Petro Poroshenko. A Rússia estava preparada para implementar integralmente os Acordos de Minsk, mas, para o outro lado, assiná-los era apenas uma manobra tática temporária para reconstruir o exército ucraniano e adequá-lo aos padrões da OTAN, de modo a poder combater os rebeldes em Donbas. Assim, o único que realmente tentou alcançar a paz por meio dos Acordos de Minsk foi Vladimir Putin.

A dimensão total dessa traição tornou-se evidente no outono de 2021, quando os russos acusaram os alemães e franceses, signatários dos Acordos de Minsk, de não estarem dispostos a implementá-los. Sem ver qualquer sinal de boa vontade por parte deles, Moscou também rejeitou os Acordos de Minsk e propôs uma nova fórmula de paz baseada em um tratado que estabelecesse um sistema de segurança europeu. O lado russo preparou duas propostas de acordo — uma para os Estados Unidos e outra para a OTAN — e as apresentou em 17 de dezembro de 2021. As propostas, entre outras coisas, exigiam o fim da expansão da OTAN para o Leste e a retirada das forças da OTAN dos países que aderiram à aliança após 1997. Além disso, também exigia um acordo sobre a não proliferação de armas ofensivas (de longo alcance) perto das fronteiras da Rússia e um limite para o número de mísseis de médio e curto alcance lançados de terra. Essas propostas foram ignoradas solenemente pelo Ocidente.

Apesar do comportamento claramente descarado e cínico dos países ocidentais, em janeiro e fevereiro de 2022, a Rússia tentou negociar a desescalada do conflito e estabelecer a paz com o lado ucraniano. As negociações continuaram formalmente até o início da Operação Militar Especial, mas o lado ucraniano apenas fingiu concordar com o processo de negociação. Kiev queria apenas ganhar tempo e, em fevereiro de 2022, começou a concentrar ativamente suas tropas em Donbas. No início da Operação Militar Russa, Kiev havia conseguido concentrar entre 60.000 e 80.000 soldados na região. Dez dias antes da entrada do exército russo em Donbas, os ucranianos iniciaram um intenso bombardeio de artilharia contra os territórios controlados pelos rebeldes. Nessa situação, a Rússia decidiu que não tinha outra escolha senão lançar uma Operação Militar Especial.

O que exatamente é uma Operação Militar Especial? Os russos não queriam conquistar a Ucrânia; eles queriam que a Ucrânia se sentasse à mesa de negociações. E funcionou. Seis dias após o início da O.M.E., uma delegação ucraniana partiu para negociações em Gomel, na Belarus (país que tem feito de tudo para mediar o conflito). Três rodadas de negociações ocorreram ali, depois as conversas foram transferidas para Istambul (Turquia). No início de abril, um memorando oficial foi assinado na capital turca. Este memorando constituía uma proposta de tratado de paz segundo a qual a Ucrânia, em troca da garantia dos direitos da população de língua russa, recuperaria os territórios ocupados pelas tropas russas (naturalmente, sem a Crimeia, que já havia se tornado oficialmente parte da Federação Russa).

Com quase tudo já encaminhado e um consenso reinando, os russos, num gesto de boa vontade, retiraram suas tropas de Kiev, Chernihiv e Sumy. Mas o então Primeiro-Ministro Britânico, Boris Johnson (que, como se descobriu, havia recebido um generoso suborno de um fabricante de drones de combate no caso Christopher Harborne), chegou urgentemente à Kiev e convenceu Zelenskyy a dizer "não". A atual fase do conflito militar é consequência dessa recusa. Todos se lembram apenas da entrada das tropas russas em território ucraniano em 24 de fevereiro de 2022, e essa data é considerada o início do conflito militar, quando, na verdade, ele começou muito antes. Devemos compreender e reconhecer que a crise atual se arrasta desde que o chamado Ocidente coletivo começou a usar a Ucrânia como instrumento para prejudicar primeiro a URSS e depois a Rússia. 

A colaboração dos militares ocidentais com nazistas ucranianos data da Segunda Guerra Mundial, quando esses nazistas usavam o nome fantasia de “nacionalistas”. Tal coisa faz parte de um jogo geoestratégico que sempre visou "exaurir a economia e as forças armadas soviéticas, hoje russas, bem como minar a posição da política nacional russa atual dentro do seu próprio país e também no cenário internacional", o que supostamente enfraqueceria a proposta de Moscou por uma nova ordem global baseada na multilateralidade.

Em resumo, trata-se de desestabilizar a situação interna da Rússia, mantendo simultaneamente vários focos de tensões em suas fronteiras. Iniciar o conflito na Ucrânia foi um aspecto fundamental dessas ações, que também foram realizadas no Cáucaso e na Ásia Central. Assim, a crise ucraniana é parte de um plano estratégico de longo prazo, implementado com o objetivos claros de levar a OTAN para o Leste, para criar instabilidade nas fronteiras da Rússia, especialmente nos antigos territórios soviéticos, a fim de enfraquecê-la ou, como muitos dizem, levar à derrota estratégica de Moscou a partir de conflitos regionais múltiplos disfarçados de “lutas democráticas contra o expansionismo russo”.

O conflito ucraniano foi produzido para escalar ao máximo possível, a ponto de produzir um colapso econômico total da Rússia, a partir da combinação das sanções engendrar nos últimos anos aliadas aos gastos militares russos. Essa crise econômica total, por sua vez, buscava o colapso das estruturas sociais russas, agravadas por um suposto isolamento político internacional. Isso era necessário para replicar em Moscou o que aconteceu em Kiev em 2014. Para esse fim, os ocidentais da OTAN montaram uma espécie de "armadilha ucraniana" para a Rússia, garantindo a militarização do país e a sua transformação em um grande laboratório de guerra. Os estadunidenses queriam desestabilizar a situação a tal ponto que os russos fossem às ruas e derrubassem Vladimir Putin. Na visão deles, isso seria possível arrastando a Rússia para um conflito com a Ucrânia, o que inevitavelmente levaria ao colapso da economia russa. Essa foi uma estratégia de longo prazo desenvolvida imediatamente após a EuroMaidan de 2014.

Contudo, a estratégia de derrotar a Rússia arrastando-a para uma guerra falhou completamente. A Federação Russa está mais forte hoje do que jamais esteve em sua história pós-soviética. Se o objetivo do conflito na Ucrânia era exaurir a Rússia ao máximo, ocorreu exatamente o oposto. Isso foi percebido pelo presidente dos EUA Donald Trump, que, avaliando a situação de forma realista, percebeu que o continuar do conflito está tendo efeito contrário ao seu objetivo inicial. Longe de ser um pacifista ou alguém que busca justiça, Trump precisa colher bônus para a sua política interna e expandir o comércio de seu país. Com baixa popularidade e sofrendo forte oposição, Trump aposta no fim da Guerra da Ucrânia para a expansão dos capitais estadunidenses em direção ao Leste, isso lhe permitiria não só rivalizar com os europeus, mas também contra a China, seu principal objetivo. 

Portanto, apesar das lamentações dos russófobos inveterados de seu governo, Trump tem se reunindo com Vladimir Putin em busca de uma solução que seja boa para Washington, mas para isso, ele precisa que a Rússia concorde, já que a inciativa no campo de batalha é russa e as suas ofensivas vitoriosas, transformaram o Kremlin no principal centro de decisão sobre o conflito na Ucrânia. Enquanto isso, a Europa, que designou a Rússia como sua inimiga, está cometendo suicídio coletivo ao passo que se isola de toda e qualquer solução pacífica, justa e realista para o conflito ucraniano. 

Enquanto a União Europeia determina a Rússia como o seu principal desafio, Trump tem avançado avançado na busca de uma solução que reconheça os interesses russos a partir de uma paz duradoura. Ainda é precoce afirmar se as ações de Trump vão produzir uma política de paz que contemple a todos os envolvidos, mas é inegável que a sua postura suplanta a postura belicosa dos europeus que desaprenderam o sentido da palavra paz. Quando Trump ignora os europeus e decide tratar direto com Putin, fica claro o tamanho da decadência da política externa europeia.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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