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Weiller Diniz

Jornalista especializado em cobertura política, ganhador do prêmio Esso de informação Econômica (2004) com passagens pelas redações de Isto É, Jornal do Brasil, TV Manchete, SBT. Também foi diretor de Comunicação do Senado Federal e vice-presidente da Radiobrás, atual EBC.

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As lágrimas na esquina vazia

'Partiu a luz mais intensa de uma geração que traduziu em canções os melhores sonhos e a mais refinada genialidade'

Lô Borges (Foto: Bárbara Dutra/Divulgação)

Como no dilúvio bíblico, chovia torrencialmente naquela primavera turva do Planalto Central. Uma ventania matinal gélida prenunciava as notas fúnebres da melodia soturna de despedida do prodígio das Gerais. As esquinas de Belo Horizonte, as montanhas de Minas, entornavam lágrimas sofridas enquanto as esquinas imaginárias de Brasília eram reidratadas pelas águas da chuva pesada e ausente. Brasília não tem as esquinas mineiras, aquelas que ensejam os encontros fortuitos, que alimentam as amizades duradouras, impulsionam os seus meninos para o mundo e facilitam os amores, os eternos e os efêmeros. Pobre Brasília, simetricamente fria, vazia de poesia. Pobre Brasília de cores mórbidas, de homens sórdidos e de temporais. Pobre Brasília, árida, pecaminosa e de hábitos mundanos.

Os milagres surgem longe destas torres e cemitérios, destes homens e os seus velórios. Eles acontecem com discrição celestial e guardam distância da vida terrena para tocar apenas em solo divino, como em Minas. O primeiro milagre se deu no centro de Belo Horizonte. No bíblico edifício Levy, o menino Salomão Borges Filho rolou 17 andares escada abaixo para comprar pão e leite, o pão sagrado de todas as tardes, temperados pelos odores adocicados do café coado. O café da tarde, encomendado por Dona Maricota - a mãe - quase foi comprometido pelos acordes vindos do 4 andar. Ali, um tal Bituca, instalado pela providência divina, explorava a boa acústica da escadaria do prédio para arrebatar o coração juvenil de Lô Borges. A comunhão com Milton Nascimento se eternizou em uma parceria que roçou o etéreo.

O milagre público se multiplicaria ainda muitas vezes, no cruzamento sagrado das ruas Paraisópolis e Divinópolis. O paraíso e o divino se encontraram para eternidade no santuário do bairro de Santa Tereza, em BH, onde os meninos se encontravam para jogar bola, pião e tocar violão. Beatles, Chico Buarque e, em rarefeitas ocasiões, a bossa nova, quase um sacrilégio aos ouvidos já catequizados pelos sons eletrizantes da Abbey Road. Convidados pelos mais abastados ao baile do Clube Oásis, os meninos pobres recusaram por falta de dinheiro, pela humildade que superou a fama e o sucesso. Ao serem excluídos do Oásis, criaram a esquina mais universal do planeta. Os meninos calçaram os tênis surrados, botaram o pé na estrada para escalar a ladeira íngreme de asfalto e pedra e imortalizar o Clube da Esquina. Um clube singular, sem sede, sem piscina nem nada. Uma janela lateral gigante, uma esquina efervescente, com o sol na cabeça e sob céu azul, girassóis iluminados e sonhos que não envelhecem.

Depois daquele meio-fio, nada seria como antes. A diversidade temperou uma sinfonia de gerações, estilos, vozes, canções poéticas, melodias primorosas, alvoroço em muitos corações e a militância política que desafiou os gases lacrimogênios de uma ditadura sanguinária que asfixiava a vida, a criação e a liberdade. Mas eles eram do mundo, eram Minas Gerais e pulsaram com as artérias misteriosas das alterosas e suas montanhas enigmáticas. Minas é lugar de adivinhar a poesia, descortinar a universalidade, extrair a essência que sempre esteve ali esperando a hora de ser descoberta. É a simplicidade do Clube da Esquina, o despojamento da família Borges que perdeu uma flor rara, da paisagem e do tempo do amadurecimento de cada coisa. Tudo em Minas é sagrado, sereno e eterno, como se morássemos sempre na mesma rua. A rua dos trilhos do trem azul misterioso, que mudou de tom e virou blue train quando embarcou o maestro Tom Jobim, com quem agora viaja com Lô Borges.

“Se eu morrer, não chore, não. É só a lua”. A gente precisava de você por muito mais dias, por mais tempo diante da vitrola, de mais tênis surrados, de mais poesia, mais liberdade, mais cantigas, mais simplicidade, mais amor e fraternidade. Quiseram os deuses separar precocemente o que, antes, uniram para todo o sempre. Partiu a luz mais intensa de uma geração que traduziu em canções os melhores sonhos e a mais refinada genialidade, aquele que não se esqueceu de dizer. Lá se vai mais um dia, mas todo dia é dia de viver.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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