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Maurici de Morais

Deputado estadual (PT-SP)

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Bolsonaro preso é justiça feita. Mas há algo ainda mais importante

Se o Brasil deseja, de fato, inaugurar um novo capítulo democrático, precisa enfrentar essa herança autoritária sem hesitação

Bolsonaro preso é justiça feita. Mas há algo ainda mais importante (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

O julgamento da tentativa frustrada de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro de 2023 carrega camadas de simbolismo que ainda não afloraram. O foco das atenções foi, sem dúvida, a sentença de 27 anos e três meses de prisão imposta a Jair Bolsonaro. O ex-presidente foi condenado por crimes que incluem tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, organização criminosa e dano qualificado. Mas há outros elementos igualmente significativos, e talvez até mais importantes dentro do contexto histórico.

Pela primeira vez na história republicana, militares da mais alta patente foram julgados e condenados por um tribunal civil. Como diria o presidente Lula, “nunca antes na história deste país”, algo semelhante havia ocorrido. E não foi por falta de oportunidade. Só no século 20, vivenciamos três golpes militares bem-sucedidos: em 1930, 1937 e 1964, além de outras tantas tentativas. Embora alguns envolvidos tenham sido presos após as intentonas, jamais houve uma condenação por tentativa de golpe de Estado. O STF rompeu uma barreira de impunidade que atravessava gerações.

É assim que entrará para os livros de história o alto oficialato que conspirou com Bolsonaro para a tomada do poder à força, após serem derrotados de forma legítima nas urnas, pela vontade do povo expressa no voto. Por isso, vale o registro do nome de cada um deles: general Walter Braga Netto, vice na chapa bolsonarista em 2022, condenado a 26 anos de prisão; almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, condenado a 24 anos; general Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, condenado a 19 anos; e general Augusto Heleno, ex-chefe do GSI, que pegou 21 anos.  

A responsabilização desses homens não é apenas jurídica: ela tem peso histórico, pedagógico e institucional. Ainda que a resistência à tentativa de golpe de 8 de janeiro e a responsabilização dos envolvidos tenha sido uma clara prova de força das nossas instituições, o histórico de golpes militares alerta para uma ameaça com a qual temos que conviver. Há uma tradição profunda e persistente de intervencionismo militar no Brasil. Mesmo diante do recado de novos tempos que o Supremo envia, não podemos nos iludir: a democracia brasileira segue exposta, à sombra de antigas tentações autoritárias.

Como bem traduziu a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, o Brasil é um país autoritário, que já se perdeu e já se reencontrou muitas vezes com a democracia.  As Forças Armadas, imbuídas de uma visão tutelar do país, frequentemente se percebem como guardiãs de uma ordem que elas próprias ameaçam. Para conter essa lógica, talvez seja hora de revisarmos o artigo 142 da Constituição, que trata da garantia dos poderes constitucionais, eliminando ambiguidades que servem de pretexto para interpretações intervencionistas e delimitando de forma inequívoca o papel das Forças Armadas.

Enquanto esse debate não avança, há um desdobramento imediato das condenações do STF: a determinação para que o Superior Tribunal Militar avalie a “indignidade para o oficialato” dos militares golpistas. O processo pode culminar na perda de patente dos condenados. Na prática, a medida equivale à expulsão da instituição militar, sem direito ao uso de farda ou ao porte de armas. Perdem o direito ao cumprimento da pena em uma instalação militar. 

Se isso de fato acontecer, eles não devem deixar, no entanto, de receber os seus generosos salários, que chegam a R$ 38 mil mensais, no caso do general Augusto Heleno. As Forças Armadas usam o conceito de morte ficta para militares expulsos, para que as remunerações sejam convertidas em pensões para familiares dos condenados. Esse entendimento é polêmico e já recebeu decisão contrária do Tribunal de Contas da União, mas a mudança da regra depende do Congresso Nacional, onde é forte o lobby da caserna e seus aliados.

A perda das patentes dos militares golpistas não deve ser vista como revanchismo, mas como um passo civilizatório, um entendimento de que a justiça vale para todos, “Chicos e Franciscos”. Infelizmente, na visão de especialistas que têm compartilhado seus pontos de vista na imprensa, dificilmente os envolvidos no 8 de janeiro perderão suas patentes, mas quero acreditar que não é algo impossível. O que está em jogo é a imagem das Forças Armadas e seus valores perante as tropas e a sociedade. E isso deve prevalecer ao corporativismo. 

Se o Brasil deseja, de fato, inaugurar um novo capítulo democrático, precisa enfrentar essa herança autoritária sem hesitação. Para além de condenar indivíduos é preciso desmontar a cultura política que lhes deu respaldo. Acredito que essa seja a verdadeira fronteira histórica aberta pelo 8 de janeiro: a oportunidade de enterrar, finalmente, a ideia de um poder paralelo armado que tutela a República. Se tivermos coragem de fazer isso, poderemos olhar para este momento não apenas como o fim de uma conspiração golpista, mas como o início de um momento histórico no qual a democracia brasileira, enfim, deixa de pedir licença para existir.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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