BRICS muda de marcha enquanto o Brasil passa o bastão à Índia em meio a tensões globais e metas ambiciosas
A presidência brasileira do BRICS enfrentou guerras e tarifas de Trump, mas avançou em sustentabilidade e inclusão. A Índia deve manter esse rumo
A transferência da presidência do BRICS é carregada de simbolismo. Em 2024, o Brasil havia recebido da Rússia um martelo de aço — símbolo de força industrial. Ao passar a presidência à Índia na última sexta-feira, o Brasil entregou um martelo feito de madeira reciclada da Floresta Amazônica. O gesto, segundo o sherpa do BRICS pelo Brasil, Mauricio Lyrio, teve a intenção de levar adiante o ethos que definiu a presidência brasileira. “O martelo representa tanto a sustentabilidade quanto as raízes profundas da cooperação que unem os países do grupo. Por meio desse gesto, reafirma-se a confiança na próxima presidência da Índia, assim como o compromisso de apoiar seus esforços para avançar a agenda do BRICS”, afirmou Lyrio, ao entregar o martelo a Sudhakar Dalela, sherpa da Índia junto ao BRICS.
A reunião dos sherpas do BRICS em Brasília, nos dias 11 e 12 de dezembro, foi além do simbolismo ao avaliar os resultados da presidência brasileira, que se encerra formalmente em 31 de dezembro. Reunindo negociadores dos 11 países-membros, o encontro foi um exercício de balanço das conquistas projetadas até 2025. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, descreveu o processo como um esforço que avançou muito além da agenda tradicional do BRICS, ao enfatizar que a relevância do grupo será cada vez mais medida por seu impacto no cotidiano das pessoas. “As grandes questões internacionais continuarão centrais em nosso trabalho, mas nossas sociedades também esperam que entreguemos resultados concretos a partir de nossas iniciativas”, disse Vieira.
Desafios em abundância
O Brasil estruturou sua presidência do BRICS em torno da sustentabilidade e do desenvolvimento inclusivo, com ênfase em entregas concretas. Isso se traduziu em três declarações na cúpula do Rio de Janeiro, em julho — sobre a governança da inteligência artificial, um marco de financiamento climático e uma parceria para eliminar doenças socialmente determinadas. Lyrio reconheceu que a presidência brasileira transcorreu em meio a uma crescente desconfiança em relação ao multilateralismo, mas afirmou que isso apenas reforçou a relevância do BRICS. “Essas tendências destacaram a centralidade do BRICS como uma plataforma de diálogo, construção de pontes e articulação de perspectivas que não poderiam ser ignoradas”, disse Lyrio, acrescentando que a declaração final da cúpula reafirmou um compromisso compartilhado com o multilateralismo.
Um desafio direto ao multilateralismo — e ao BRICS — surgiu em junho, poucos dias antes da cúpula do Rio de Janeiro, quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, advertiu sobre “consequências punitivas” caso o grupo buscasse “enfraquecer o dólar americano”. Trump ameaçou impor tarifas de 100% contra países que, segundo ele, estariam minando a moeda dos Estados Unidos. Dias depois, em uma mensagem pouco disfarçada dirigida à Índia, o secretário de Comércio dos EUA, Howard Lutnick, afirmou que a compra, por Nova Délhi, de equipamentos militares russos e seu alinhamento ao BRICS haviam “irritado os Estados Unidos”.
Apesar da pressão, a Índia participou plenamente da cúpula do Rio e ajudou a transformar o encontro em um momento definidor para o grupo. A cúpula do Rio, realizada em 6 e 7 de julho, tornou-se a primeira reunião do BRICS a reunir todos os 11 membros plenos, ao lado de 10 países parceiros, oito nações convidadas e representantes de todas as principais instituições multilaterais, com os líderes endossando declarações-chave sobre finanças, ação climática e tecnologia. Falando após a cúpula, Vieira afirmou que o BRICS era “o berço de um novo modelo de desenvolvimento” e que o Sul Global “não é mais periférico, mas central na defesa do multilateralismo”.
A presidência brasileira do BRICS deixa como legado um roteiro claro, articulado na cúpula pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva por meio de uma crítica à arquitetura financeira global. “As estruturas do Banco Mundial e do FMI refletem um Plano Marshall invertido, no qual economias emergentes e em desenvolvimento financiam o mundo mais desenvolvido”, disse Lula, ao defender uma reforma sistêmica. Além disso, a cooperação em saúde e a governança global foram reforçadas durante o mandato brasileiro, enquanto a inteligência artificial emergiu como uma prioridade do BRICS. “As tecnologias emergentes devem operar dentro de um marco de governança que seja justo, inclusivo e equitativo”, afirmou Lula na cúpula, alertando que a IA não deve se tornar “o privilégio exclusivo de um punhado de nações, nem uma ferramenta de manipulação concentrada nas mãos de bilionários”.
A autonomia econômica constitui outro pilar importante do legado brasileiro. A presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), Dilma Rousseff, disse na cúpula do Rio que o mandato do NDB é financiar infraestrutura, inovação e sustentabilidade “promovendo justiça social, soberania e crescimento sustentável”, reafirmando a ambição do BRICS de moldar seu próprio caminho de desenvolvimento.
Agora, com a passagem do martelo do BRICS do Brasil para a Índia, a transição vem sendo apresentada como um processo de continuidade. Na cerimônia de entrega realizada no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em Brasília, Dalela reconheceu a profundidade da condução brasileira, observando que os avanços na cooperação política e de segurança, na coordenação econômica e financeira e nos intercâmbios entre povos refletiram uma presidência levada a sério em todos os níveis. “Este ano foi especialmente significativo por coincidir com a fase de consolidação da membresia ampliada”, afirmou, acrescentando que a integração de novos parceiros exigiu um equilíbrio cuidadoso entre a preservação dos princípios fundadores do BRICS e a resposta às mudanças na governança global. “A liderança do Brasil foi exemplar”, concluiu, estabelecendo o tom para a presidência indiana.
Tempos difíceis
O ano de 2025 tem sido particularmente tenso para o BRICS em seu 17º ano. Com Trump de volta à Casa Branca, quase todas as principais instituições internacionais foram abaladas e o comércio global, desestabilizado por uma onda de sanções unilaterais. Brasil e Índia, ambos membros fundadores do BRICS, encontraram-se na linha de frente da guerra comercial de Trump — enfrentando tarifas de quase 50%, embora a maior parte das medidas contra o Brasil tenha sido revertida. Em vez de ceder à pressão, o Brasil utilizou sua presidência do BRICS para conduzir o grupo por uma fase complexa sem danos reais — um possível modelo para futuras presidências.
Ao assumir a liderança do grupo em 2026, Dalela, secretário de Relações Econômicas do Ministério das Relações Exteriores da Índia, afirmou que Nova Délhi dará continuidade à agenda endossada coletivamente. A presidência indiana se apoiará em quatro pilares — resiliência, inovação, cooperação e sustentabilidade —, com iniciativas em andamento sobre mudança climática, inteligência artificial e cooperação científica destinadas a prosseguir.
À medida que a presidência do BRICS passa do Brasil para a Índia, o próximo capítulo provavelmente será baseado na continuidade e na consolidação.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




