Deferência judicial, transparência e a legitimidade das decisões do Cade
A melhor defesa da independência técnica do Cade é a sua capacidade permanente de se explicar
No artigo “CSN x Usiminas: atropelo judicial substitui deferência ao Cade”, publicado no JOTA em 30/11/2025, — dos autores Ticiana Lima, do escritório Vinícius Marques de Carvalho Advogados (VMCA), e Eduardo Jordão, do Portugal Ribeiro e Jordão Advogados — sustenta-se que a decisão judicial que levou o Cade a recentemente aplicar multa à CSN teria ultrapassado os limites da autocontenção judicial. Trata-se de um texto relevante, que resgata um princípio valioso: a deferência do Judiciário às autoridades técnicas. É correto, também, o apontamento dos autores de que a escassez de informações públicas dificulta o debate qualificado sobre o tema. Mas é justamente aí que reside o ponto central: a deferência não se sustenta sem transparência e motivação suficientes.
A autocontenção judicial é técnica institucional para preservar a expertise da autoridade administrativa. Sua legitimidade depende de condições mínimas: publicidade adequada, motivação clara e a tal da “accountability” – prestação de contas. Quando a sociedade não consegue verificar por qual razão o Cade alterou compromissos assumidos ou prorrogou obrigações por prazo indeterminado, a premissa que justifica a deferência se enfraquece. Em um cenário de opacidade, o Judiciário deixa de ser intruso e passa a cumprir o papel de garantidor da legalidade e da racionalidade administrativa.
No caso em debate, o (já bastante) longevo Termo de Compromisso de Cessação entre Cade e CSN passou por alterações relevantes ao longo do tempo, culminando, segundo notícias públicas, em prorrogação por prazo indeterminado do desinvestimento. Admitamos, com os autores do artigo no JOTA, que o acesso limitado aos autos dificulta conclusões categóricas. Essa exata limitação evidencia um problema institucional: decisões de alto impacto (concorrencial e de mercado de capitais) devem vir acompanhadas de justificativas que possam ser escrutinadas. Não se trata de revelar segredos empresariais ou detalhes sensíveis, mas de assegurar que os fundamentos econômico-jurídicos essenciais estejam disponíveis de forma compreensível e auditável. Inclusive para permitir a isonomia.
A deferência não suprime o controle de legalidade. Quando o Cade modifica compromissos e redesenha obrigações sem motivação pública suficiente, ou sem demonstrar o nexo entre a mudança e a finalidade concorrencial, a revisão judicial pode ser não apenas legítima, mas necessária. O Judiciário, nesse contexto, não substitui o mérito econômico da autoridade; apenas verifica se houve respeito à moldura legal, proporcionalidade da medida e fidelidade à finalidade pública. A distinção é importante: controle de legalidade não é controle de conveniência, e as decisões do Cade são “judicantes”.
É também prudente evitar que a complexidade técnica do Direito (em especial do antitruste) se transforme em escudo contra a transparência e o controle externo. Mercados concentrados, cenários dinâmicos e escolhas regulatórias difíceis exigem mais motivação e mais publicidade, não menos. Autoridades independentes são concebidas para decidir com técnica e autonomia, mas também para explicar porque decidiram, sobretudo quando revisitam obrigações pactuadas com efeitos significativos sobre consumidores e investidores, no caso concreto. Sem essa explicação, aumenta a percepção de arbitrariedade e, com ela, a propensão à judicialização.
Há, por fim, um elemento constitucional que não pode ser ignorado. A livre concorrência, princípio do art. 170 da Constituição, confere densidade normativa à atuação do Cade e legitima a intervenção judicial quando atos administrativos se afastam da finalidade de proteger o ambiente competitivo. O argumento não é a favor do protagonismo judicial, mas da complementaridade institucional: o Judiciário atua como freio e contrapeso em situações em que a autoridade técnica não oferece razões verificáveis para suas escolhas.
Os autores acertam ao recordar precedentes e doutrina favoráveis à deferência, e também ao registrar que a falta de dados públicos cria uma zona cinzenta. Mas é precisamente por isso que o caminho de saída é inequívoco: mais transparência e melhor motivação. Publicidade dos fundamentos essenciais, parâmetros claros para revisões de acordos, balizas objetivas de dosimetria sancionatória e registros acessíveis sobre mudanças de contexto concorrencial são medidas que reduzem o atrito interinstitucional e fortalecem a confiança na política antitruste.
Em síntese, a controvérsia CSN x Usiminas não deve ser lida apenas como um embate entre Judiciário e Cade. Ela revela, sobretudo, a necessidade de recalibrar o pacto de confiança que sustenta a deferência judicial: quanto maior a transparência e a qualidade da motivação administrativa, menor a necessidade de intervenção judicial; quanto mais opacos os fundamentos, mais a revisão jurisdicional se torna previsível e, em certos casos, devida. A melhor defesa da independência técnica do Cade é a sua capacidade permanente de se explicar. Sem isso, a deferência corre o risco de perder o alicerce que a justifica.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




