Depois das redes: como reumanizar a internet?
Estamos na era da dopamina barata
Se meu texto aqui fosse um episódio perdido de Black Mirror, começaria assim:
1- você abre o app.
2- o feed rola, as notificações pulsam — mas ninguém está de fato ali.
3- avatares conversam com avatares, resumos explicam resumos, e o “engajamento” é um gráfico sem pulso.
A boa notícia? Ainda dá para puxar o fio e voltar ao humano. Mas isso exige declarar o fim de uma era e apostar, de forma assumidamente futurista, no que vem a seguir.
Eis um incômodo diagnóstico: enshittification.
Cory Doctorow descreveu a enshittification como plataformas que primeiro nos seduzem e depois nos espremem. A IA generativa acelerou o estágio final: uma inundação sintética que barateia conteúdo e encarece a atenção confiável. Emily Bender já havia dito: grandes modelos “papagaiam” padrões e não compreendem o mundo. Luciano Floridi, um dos grandes filósofos contemporâneos que acompanho, chama o presente de onlife, ou seja, não vida há fora de alguma rede, só graus de agência dentro dela. A vida digital é real já não se distinguem plenamente.
Tradução para 2025: o feed como centro de gravidade entrou em colapso funcional. A métrica-mãe (a do engajamento) virou métrica-robô — reflete movimento em espelho , mas não mais tanto sentido.
Estamos na era da dopamina barata descrita por Naval Ravikant como aqueles estímulos de recompensa imediata e rasa: curtidas, alertas, pings, o vídeo seguinte que toca sozinho. Trata-se de micro-picos que saciam sem nutrir. Que iludem sem nos completar. A arquitetura das plataformas foi treinada em reforço de razão variável (Skinner): nunca sabemos quando a próxima recompensa vem — e por isso puxamos a alavanca outra vez.
O excesso de estímulo derruba o limiar de prazer, empurra para tolerância e craving. Leva com facilidade à adicção. Falamos aqui de um sistema que sequestra o nosso circuito de atenção e o revende em leilões. Leilões banais. E chega então a IA como o anabolizante cada vez mais indispensável, produzindo mais gatilhos por minuto, slop previsível, mas suficiente para cutucar o nosso cérebro.
Resultado? Um cotidiano com muito pico e pouco propósito. O problema não é prazer, isso temos sempre - barato demais, rápido demais, o tempo todo.
O antídoto não é nostalgia, não se enganem: é design.
Precisamos de u a higiene dopaminérgica aplicada à tecnologia, à comunicação e aos negócios.
O próximo ato ou… no que aposto daqui pra frente
1) Do app ao mordomo digital
Em vez de abrir 7 aplicativos, você vai dizer: “meu agente, resolva”. Ele compara preço, marca consulta, cancela spam e pede seu OK antes de pagar. Pense no Alfred do Batman, só que do seu celular.
Tecnicamente, falo de agentes pessoais de IA (personal AI agents) orquestrando tarefas via automação + LLM (function calling, RAG, integrações tipo API).
2) Dos jardins murados às ruas conectadas (com pedágio)
Menos “cada rede manda em tudo”(hoje cada rede é um “condomínio fechado” que controla tudo: seu login, seus posts, quem te segue, o algoritmo que te mostra coisas e até como você sai), ou seja menos cerca e mais rua, mais encanamentos que se comunicam. Você leva identidade e comunidade na mala e escolhe seus filtros. As big techs seguem grandes, mas competem pela experiência, não pela cerca.
Redes diferentes passam a conversar porque usam regras públicas (como ActivityPub e AT Protocol); com isso, as plataformas se conectam, você pode levar seu @ e seus dados de um app para outro e ainda escolher os filtros/moderação que moldam o seu feed.
3) Do conteúdo à “nota fiscal” do conteúdo
Vai valer mostrar procedência: quem fez, com o quê, onde entrou IA. Sem rótulo, vira sopa misteriosa.
Tecnicamente, trata-se de usar Content Credentials (C2PA) para anexar ao arquivo um “selo” com metadados assinados (quem criou, quando, com quais ferramentas e se houve IA) e manter uma trilha de auditoria das edições — ou seja, dá para verificar a origem e o que mudou.
4) Do alcance ao abraço
Mil curiosos valem menos que 100 pessoas que voltam, compram, indicam e conversam. A régua muda de “quantos viram” para “o que mudou em quem viu”.
Isso quer dizer que usar Content Credentials no padrão C2PA (Coalition for Content Provenance and Authenticity) para anexar metadados assinados (quem criou, quando, com quais ferramentas e se houve IA – inteligência artificial), mantendo uma trilha de auditoria (audit trail) das edições — dando assim para verificar a proveniência e o que mudou.
5) Da busca ao oráculo (com fontes!)
Você pergunta e recebe resposta explicada, com links e de onde veio a informação. Quem faz reportagem, dados e experiência real vira ouro.
O que vai acontecer? RAG (retrieval-augmented generation) quer dizer que a IA não responde “de cabeça”: ela pesquisa primeiro em fontes fidedignas e verificáveis (documentos, dados oficiais, reportagens), puxa trechos com autor, data e link e só então redige. Depois, um sistema de QA (perguntas e respostas) confere se o texto realmente responde ao que foi perguntado e exibe as referências na própria resposta para você saber exatamente de onde cada afirmação veio.
6) Do @ à reputação que viaja com você
Vão surgir “carimbos de confiança”: selos no seu perfil que mostram o que você realmente fez — post útil, pesquisa citada, projeto que ajudou, vez que você moderou a bagunça. Esses selos são seus (ficam na sua “carteira” digital) e viajam com você quando troca de aplicativo. Quem só faz barulho ou tenta ludibriar para influenciar? Não junta carimbo, porque não tem feito para provar.
Tecnicamente estou me referindo a credenciais verificáveis (VCs - verifiable credentials) e identificadores descentralizados (DIDs - decentralized identifiers) guardam essas provas sob seu controle. um grafo de contribuição registra suas colaborações e gera pontuações de reputação portáteis — uma “nota de confiança” que acompanha seu @.
7) Da IA solista à IA roadie (ou sous-chef)
Nada de profecia maluca: a aposta prática é pôr a IA nos bastidores e manter você no microfone. Ela ajuda a pesquisar, rascunhar, traduzir e revisar, mas quem decide, corta e assina é humano. Jogo limpo: diga onde a IA entrou e por quê — e guarde prova do processo. Resultado: mais agilidade, sem perder voz autoral nem responsabilidade.
Arrisco aqui o que chamam de HITL – human-in-the-loop (humano no circuito), fluxos de IA assistiva (incluindo function calling ou chamada de função) e, quando fizer sentido, RAG (retrieval-augmented generation/geração aumentada por busca), política de uso declarado (disclosure) e logs de edição — audit trail (idealmente embutidos via Content Credentials/C2PA) para transparência e auditoria.
Como reumanizar - um singelo playbook com higiene dopaminérgica
- Redesenhe métricas. Troque CTR (taxa de cliques)/tempo de tela por métricas de transformação: respostas qualificadas, recompras, convites, tempo de comunidade, referências cruzadas.
- Declare o papel da IA. Onde houve IA, avise e guarde rastros de edição. Onde for 100% humano, prove a origem (fontes, bastidores, rascunhos).
- Corte gatilhos baratos que nada mais são do que os truques que prendem pelo impulso e não pela qualidade como notificação pingando, vídeo que toca sozinho e feed que nunca acaba. Troque isso por escolhas conscientes e um ritmo previsível. Como? Deixando notificações desligadas por padrão e só ativando o essencial (como pagamento aprovado ou alerta de aula ao vivo), desativando autoplay, fazendo em site/blog a página ter fim, entre outros que você vai descobrindo pra proteger a saúde mental (e física!).
- Publique cadência com dias/horários fixos (ex.: terças e sextas) e organize conteúdos em episódios com começo–meio–fim. Por quê? Menos ansiedade e mais atenção de verdade, melhorando a retenção qualificada e a reputação da sua marca.
- Desenhe salas pequenas. Fórum moderado, newsletter com diálogo, círculo de membros, encontros presenciais. Menos palco, mais mesa.
- Agentes-first e acessível a máquinas. Crie títulos claros, metadados ricos, datasets anexos. O seu conteúdo deve ser ensinável a agentes — para ser recomendável a humanos.
- Crie rituais de profundidade. Office hours sem rede, sabbath digital, calendários de estudo/projeto e, ousadamente, um “orçamento de dopamina” que privilegie tarefas longas e relações densas.
Meu pequenino manifesto para a era pós-feed
- Confiança é infraestrutura. Procedência, moderação e rótulos não são adendos, eles são parte da obra.
- Comunidade é produto. Sem espaço para vínculo, não há marca, só campanha.
- IA é lente, não olho. Ela amplia e você é quem decide o que importa. A curadoria é sua!
- Densidade > barulho. Mil leituras mornas valem menos que dez conversas transformadoras.
- Portabilidade é soberania. Vá aonde quiser sem deixar sua história para trás.
- O prazer jamais será um vilão. O problema é a dopamina barata. Invista em prazer caro: criação, aprendizado, cooperação, presença.
No episódio final, o protagonista fecha o app e entra numa sala menor, com gente de verdade, regras claras e objetivos compartilhados. A internet não ficou “menos tecnológica”, ela só ficou melhor desenhada para humanos. Depois do feed e do engajamento, o jogo não é gritar mais alto no anfiteatro e sim costurar sentido entre pessoas, com ferramentas poderosas e critérios ainda mais potentes.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




