E a caravana quinquenal chinesa continua passando
No tabuleiro global, Pequim continuará enfatizando o poder do “sistema de comércio multilateral”. Como sendo o oposto absoluto ao Trump 2.0
Quatro dias em Pequim. A quarta sessão plenária do 20º Comitê Central do Partido Comunista da China foi algo digno de ser visto.
A metodologia é importante. O que aconteceu durante esses quatro dias é que os delegados debateram e em seguida aprovaram “recomendações” que levarão ao 15º Plano Quinquenal da China. Um comunicado, em seguida, estabeleceu os vetores básicos a serem tratados. A íntegra do Plano só será conhecida em detalhes em março próximo, quando ele será aprovado pelas famosas Duas Sessões, em Pequim.
Indo direto ao ponto: é assim que a China trabalha, planejando meticulosamente tudo com grande antecedência, com alvos claros e supervisão meritocrática. A terminologia – metafórica – deixa algum espaço de manobra: todos têm consciência dos “fortes ventos, ondas ferozes e tempestades violentas que temos pela frente” – tanto interna quanto internacionalmente. Mas a “determinação estratégica” não vacilará.
Os principais vetores para a liderança chinesa incluem “fortalecer a agricultura”, “beneficiar os agricultores”, e “alcançar prosperidade rural” – e, ao mesmo tempo, progredir com “a nova urbanização centrada nas pessoas”.
No tabuleiro global, Pequim continuará enfatizando o poder do “sistema de comércio multilateral”. Como sendo o oposto absoluto ao Trump 2.0.
Os grandes alvos do 15º Plano Quinquenal são bastante claros. Dentre eles: “avanços em desenvolvimento de alta qualidade”, “aumento da autossuficiência tecnológica”, o bastante confucionista “notável progresso cultural e ético em toda a sociedade”, e fortalecimento do escudo de segurança nacional”.
Resumindo: a prioridade máxima das lideranças chinesas é construir “um sistema industrial modernizado”. Significando um sistema de economia mista produtivo – não especulativo – conduzindo o desenvolvimento rural, urbano e tecnológico.
Rumo a um “mercado unificado nacional” de ultra alta tecnologia.
Por toda a China, são muitos os evidentes exemplos práticos do que foi alcançado até agora. No mês passado, tive o privilégio de testemunhar ao vivo o florescimento do socialismo com características chinesas em termos do desenvolvimento sustentável em Xinjiang . Xinjiang é agora um polo de Tecnologia da Informação e energia limpa – exportada para o restante da China.
Há também as conquistas tecnológicas do Made in China 2025, lançado dez anos atrás, já colocando a China como o líder tecnológico em pelo menos 8 ou 10 áreas científicas. Além disso, programas de importância crucial desconhecidos até mesmo por muitos chineses, com ênfase especial no Programa 973 e no Projeto 985.
O Programa 973, lançado ainda em 1997, é o Programa Nacional de Pesquisas de Base, cujo objetivo é alcançar superioridade tecnológica e estratégica em diversos campos científicos – em especial no desenvolvimento da indústria de minerais de terras raras. Esse programa elevou a China ao topo em termos de competitividade científica global.
O Projeto 985 foi lançado em 1998 com o fim de desenvolver um grupo seleto de universidades de primeira linha, elevando-as a um padrão mundial. Daí o surgimento de Tsinghua, Pequim, Zhejiang, Fudan e do Instituto de Tecnologia Harbin, entre outras, como líderes mundiais em engenharia, ciências da computação, robótica, ciência aeroespacial, incluindo avanços importantes em IA, computação quântica e energia verde. Ivy League e Oxbridge? Pode esquecer: agora, o que realmente importa são as universidades chinesas.
Um outro projeto de importância chave é o Corredor de Ciência e Inovação G60, conectando nove cidades no delta do Rio Yangtzé, na China. Essas cidades, apenas no ano passado, contribuíram com quase 2,2 por cento do valor agregado industrial global (itálicos meus). Isso é reflexo do planejamento econômico estratégico impulsionando o progresso tecnológico – na prática.
Em uma entrevista coletiva, altas autoridades do Comitê Central apontaram para alguns pontos básicos que obviamente são totalmente desconsiderados pelo fragmentado Ocidente, mas não por largas parcelas do Sul Global. Em especial, o fato de os Planos Quinquenais serem vistos como uma das principais vantagens políticas da China.
A formulação do próximo plano, como é comum na China, inclui sugestões dadas por todos os escalões da sociedade. Os motores do mercado, de agora em diante, incluirão necessariamente infraestrutura de computação e direção e manufaturas inteligentes. E é previsível que, até 2035, será colocada especial ênfase na tecnologia quântica, em biomanufatura, hidrogênio, fusão nuclear, interfaces cérebro-computador, inteligência corporificada e 6G, para não mencionar a Inteligência Artificial.
Conceitualmente, a China irá focar seu imenso mercado interno: o que é definido como o “mercado nacional unificado”.
Um ênfase especial foi colocado no propósito chinês de combater a “involução”: ou seja, a competição intraindustrial que causou problemas para diversos setores chineses.
Sobre as espinhosas relações Estados Unidos-China, autoridades do Comitê Central foram categóricas: o foco recairá no “diálogo e cooperação”, e não no “desacoplamento e fragmentação”, Bem, ambas as partes estão se encontrando na Malásia neste momento, nos bastidores da cúpula da ASEAN. As perspectivas de um acordo comercial mais amplo, entretanto, são frágeis.
Como entender a evolução do sistema político chinês
A principal mensagem: o 15º Plano Quinquenal tratará do período 2026-2030. Pequim quer reforçar tudo o que foi alcançado até agora, com um claro foco no longo prazo: atingir, até 2035, o que é definido como “modernização socialista”.
Com base no que eu, pessoalmente, vi em Xinjiang, no mês passado, comparado com minhas vistas anteriores (a última há mais de uma década), não há sombra de dúvida de que eles terão êxito.
É de importância crucial examinar a forma pela qual dois acadêmicos chineses de primeira linha explicam a evolução do sistema político chinês. Alguns trechos importantes merecem ser citados na íntegra:
“Embora o sistema tradicional não fosse imune a mudanças, o objetivo dessas mudanças era manter o status quo, evitando mudanças “revolucionárias”. Depois da dinastia Han, a política de “abolir todas as escolas de pensamento e conservar unicamente o Confucionismo” suprimiu ideologicamente quaisquer fatores que pudessem catalizar mudanças políticas de monta. O Confucionismo se tornou a única filosofia dominante, e seu propósito intrínseco era manter o domínio. O filósofo moderno alemão Hegel afirmou que “a China não tem história”. De fato, por milhares de anos, desde o Imperador Qin Shihuang até a Dinastia Qing tardia, a China passou apenas por uma sucessão de dinastias, não por mudanças fundamentais nas instituições. O conceito de Marx de “o modo de produção asiático” se alinha com as ideias de Hegel. Teóricos chineses, como Jin Guantao, também têm isso em mente ao usar o termo “estrutura superestável”. Pode-se afirmar que esse é um reflexo da vitalidade do sistema político tradicional, ou que a China não passou por mudanças estruturais por milhares de anos”.
“O atual sistema político é bem diferente, principalmente porque o Iluminismo estabeleceu firmemente o conceito de progresso, que a sociedade pode progredir e que esse progresso é ilimitado. Desde a revolução de Sun Yat-sem até o Partido Nacionalista de Chiang Kai-shek, e em seguida o Partido Comunista, gerações de chineses buscaram mudanças, compartilhando o mesmo objetivo: transformar a China e alcançar o progresso. Durante o Iluminismo moderno, a ética individual confuciana que servia de base ao antigo sistema, foi submetida a críticas e ataques os mais radicais. No entanto, embora a antiga ética não seja mais viável, diversas facções políticas não conseguem chegar a um consenso quanto a que o futuro irá trazer. De que tipo de mudanças a China necessita? Como essas mudanças devem ser buscadas? Qual o propósito das mudanças? Diferentes forças políticas têm visões divergentes”.
O que o Partido Comunista fez, afirmam esses dois acadêmicos, foi de fato bastante revolucionário, optando pelas mudanças radicais: “Essa é a revolução socialista que ele buscou desde sua fundação, usando a revolução para derrubar o antigo regime, transformar por completo a sociedade e criar um sistema inteiramente novo. Naturalmente, isso leva também às diversas contradições que confrontam a China hoje, principalmente o conflito entre a filosofia confucionista tradicional e o marxismo-leninismo. A primeira foca a manutenção do status quo, ou a adaptação que permite sua sobrevivência, enquanto a última busca mudanças continuadas”.
“Desde meados da década de 1990, o Partido Comunista Chinês acelerou sua transformação de partido revolucionário a partido governante. (…). Uma coisa é clara: se um partido político governar unicamente por governar, ele inevitavelmente entrará em declínio. Isso fica evidente na história do governo comunista na União Soviética e no Leste Europeu, e também na experiência histórica e atual dos partidos políticos ocidentais, que calculam sua legitimidade com base nos votos obtidos”.
“Após as reformas e a abertura, o Partido Comunista Chinês redefiniu sua modernidade, com o objetivo de atingir a meta revolucionária original de resolver o problema do “empobrecimento universal”. No entanto, ao redefinir modernidade, o Partido também se esforçou para preservar a “natureza revolucionária” do partido governante (…) Em termos de desenvolvimento econômico, a economia orientada para o PIB desempenhou um inestimável papel, transformando o “socialismo da pobreza” em apenas algumas décadas. À época do 18º Congresso Nacional do Partido Comunista, em 2012, a China havia se tornado a segunda maior economia do mundo e a maior potência comercial, com o PIB per capita crescendo de menos de 300 dólares, em inícios da década de 1980, para 6.000 dólares atualmente. E o que é mais importante, a China retirou 700 milhões de pessoas da pobreza absoluta”.
A conclusão, entretanto, é inescapável, e é inerente à maneira pela qual Pequim agora descreve sua evolução política: o Partido Comunista Chinês tem que redefinir sua modernidade reafirmando sua missão, enfatizando suas aspirações iniciais e revivendo sua natureza revolucionária”.
Afinal, observam os dois acadêmicos, “na China, os partidos políticos são o sujeito da ação política, e essa ação não se refere apenas à sobrevivência e ao desenvolvimento, mas também a conduzir o desenvolvimento nacional em todos os seus aspectos (...) O Partido no poder deve definir de forma proativa sua própria modernidade por meio da ação, buscando e atingindo essa modernidade. Ao renovar e definir constantemente sua modernidade, o partido no poder poderá preservar seu senso de missão ao conduzir o desenvolvimento social e, ao mesmo tempo, renovar-se a si próprio.
Dificilmente poderia haver um resumo tão agudo de por que razão o socialismo com características chinesas não tem paralelos quando se trata de traduzir decisões políticas em alvos de desenvolvimento sustentável. Complemente-se isso com a análise sucinta do bilionário de Hong Kong Ronnie Chan sobre a inevitabilidade da ascensão – mais uma vez - da China.
O contraponto é a China deixar de ser a prioridade máxima do Pentágono. O Dono do Circo está, essencialmente, sendo forçado a admitir a vantagem chinesa na competição estratégica global. Pode esquecer a intenção de “ganhar” a guerra comercial/tecnológica contra a China – especialmente depois da jogada ao estilo Sun Tzu sobre as terras raras.
Enquanto isso, os cães da contenção ladram, enquanto a Caravana Quinquenal chinesa continua passando.
Tradução de Patricia Zimbres
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



