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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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É inadmissível criar leis para crimes com hora certa, réus já sabidos e beneficiários óbvios

PL da Dosimetria relativiza crimes contra a democracia e coloca o Congresso no papel perigoso de revisor político das decisões do STF

Congresso Nacional - 16/09/2024 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

.O projeto de lei da chamada dosimetria não é um episódio lateral do processo legislativo nem um debate técnico restrito a especialistas. Trata-se de uma iniciativa que incide diretamente sobre crimes contra a democracia, sobre decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e sobre o próprio sentido de justiça em um Estado constitucional. Ao avançar em dezembro de 2025, às vésperas do recesso parlamentar, o projeto revela uma escolha política clara: reabrir, por via legislativa, o julgamento de ataques frontais ao Estado Democrático de Direito.

Não se está diante de um desacordo hermenêutico legítimo nem de uma divergência acadêmica honesta sobre política criminal. 

O que se observa é uma intervenção legislativa dirigida, com alvo histórico preciso, destinada a reconfigurar tipos penais e regras de execução da pena a partir de um evento concreto — os atos de 8 de janeiro de 2023. 

Ao agir assim, o Parlamento abandona a função prospectiva da lei e passa a legislar retrospectivamente, interferindo em condenações já proferidas, tensionando a separação de Poderes e comprometendo a confiança pública na ideia de que a Justiça decide com base na lei, não na conveniência política posterior.

Os fatos são objetivos e precisam ser registrados com precisão. Em 9 de dezembro de 2025, o substitutivo do projeto foi apresentado na Câmara dos Deputados pelo relator Paulinho da Força. Na madrugada de 10 de dezembro, o texto foi aprovado por 291 votos a 148 e enviado ao Senado. 

O ritmo acelerado não foi casual nem neutro; revelou prioridade política clara e pouca disposição para um debate aprofundado sobre suas consequências institucionais.

O PL 2.162/2023 entrou na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado para o dia 17 de dezembro, sob relatoria formal do senador Esperidião Amin. Na véspera, em 16 de dezembro, o senador Alessandro Vieira protocolou voto em separado defendendo a rejeição do texto aprovado pela Câmara.

É essencial registrar corretamente esse ponto. O relator oficial na CCJ é Esperidião Amin. Alessandro Vieira não relatou o projeto, não apresentou substitutivo e não conduz sua tramitação. Seu voto em separado deve ser visto pelos seus pares na comissão como um vigoroso alerta político e jurídico, uma tentativa explícita de frear uma inflexão legislativa que ameaça ultrapassar limites constitucionais sensíveis. 

Não se trata de gesto retórico, mas de uma advertência institucional clara sobre os riscos de se legislar para anular, por vias oblíquas, decisões judiciais legítimas.

A distinção importa porque o debate público foi deliberadamente embaralhado, como se a confusão institucional ajudasse a suavizar a gravidade do que está sendo proposto.

O projeto aprovado na Câmara não nasce neutro. 

Seu núcleo político-jurídico dialoga diretamente com os atos de 8 de janeiro de 2023. O primeiro eixo sensível está na forma como o texto trata a imputação simultânea de dois crimes previstos no Título dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito: tentativa de golpe de Estado e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, ambos introduzidos pela Lei 14.197/2021. Essa lei, vale recordar, não surgiu em um vácuo histórico. Foi concebida exatamente para substituir a arcaica Lei de Segurança Nacional e para proteger o regime democrático contra investidas autoritárias. Agora, ironia das ironias: quem foi o presidente da República que assinou esta lei? Ganha a Mega-Sena da virada quem descobrir primeiro.

O substitutivo orienta o julgador a aplicar concurso formal quando os dois delitos ocorrerem no mesmo contexto, evitando a soma direta das penas e priorizando a mais grave, com acréscimos. 

Esse desenho não é abstrato. Ele reabre, por via legislativa, decisões judiciais já tomadas com base em provas extensas, contraditório e ampla defesa. Trata-se de uma revisão indireta de julgamentos concluídos, cuidadosamente — e maquiavelicamente pensado — para produzir efeitos retroativos benéficos a réus específicos, determinados CPFs.

É preciso afirmar sem ambiguidade: é uma aberração jurídica aglutinar esses dois tipos penais. 

Tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito não são a mesma coisa, nem produzem os mesmos efeitos institucionais. A tentativa de golpe visa à tomada ilegítima do poder político, à substituição forçada do governo constituído, ainda que preservando formalmente parte da estrutura estatal. A abolição do Estado Democrático de Direito representa algo mais profundo: a supressão do próprio regime constitucional, a eliminação das garantias fundamentais, da separação de Poderes e do pacto civilizatório.

No julgamento pela corte competente, cada crime gera respostas penais distintas porque atinge camadas diferentes da ordem democrática. 

Fundi-los significa diluir responsabilidades e reduzir artificialmente a reação do Estado a ataques que não admitem relativização. Ambos deveriam ser tratados como intangíveis, próximos a cláusulas pétreas materiais, justamente porque protegem a própria existência do Estado constitucional. Ainda guardo essas lições de meu saudoso professor Heleno Fragoso, na faculdade Direito Cândido Mendes do Rio de Janeiro.

Nesse ponto, torna-se inevitável questionar a condução técnica do projeto na Câmara. 

É legítimo indagar se Paulinho da Força, sindicalista e deputado sem formação jurídica conhecida, possui preparo técnico para relatar um projeto penal dessa complexidade. Não é jurista, não é advogado e não possui trajetória acadêmica no campo do direito penal ou constitucional. Quando se legisla sobre crimes contra a democracia, a escolha do relator não é detalhe procedimental; é forte sinal de ingerência política que não resiste à luz do dia. Todos percebem quando ele surge. 

O segundo eixo do projeto aprofunda a controvérsia ao alterar a Lei de Execução Penal, reorganizando critérios e percentuais de progressão de pena. Não se trata de ajuste periférico. A execução penal é estrutura sistêmica. Qualquer mudança em seus parâmetros se projeta automaticamente para milhares de condenações, inclusive por crimes praticados com violência ou grave ameaça. A lei não opera por exceções narrativas; opera por regras gerais.

Aqui emerge uma objeção filosófica incontornável. Leis não podem ser feitas para crimes com data certa, réus conhecidos e beneficiários visíveis. 

Golpes de Estado não são desvios episódicos; são rupturas brutais na história de sociedades livres.

Então me vem à memória a famosa frase do polêmico presidente Jânio Quadros: “Fí-lo porque qui-lo.” Há de se esperar que o Senado não tome uma decisão que revele tamanha voluntariedade legislativa — fazer apenas porque se desejou fazer — sem levar em conta seus inúmeros e profundos desdobramentos práticos para o sistema de Justiça e para o coração da democracia brasileira.

Se essa brecha não for encerrada de maneira definitiva pela Comissão de Constituição e Justiça ou pelo plenário do Senado nas próximas 48 horas, o Congresso Nacional terá cruzado uma linha histórica perigosa: a de assumir conscientemente a função de corretor político de sentenças penais. Estará consagrado o princípio de que crimes contra a democracia não são julgados pela extensão do dano causado à República, mas pela força social, eleitoral ou intimidatória de quem os praticou. 

Sabemos há muito que no Brasil quando a exceção vira técnica e a conveniência vira doutrina, a impunidade deixa de ser desvio e passa a ser política de Estado — com consequências que a História jamais costuma perdoar.

Alessandro Vieira ao defender a rejeição do texto, aponta o que muitos evitam dizer: mesmo sob o discurso de correção de excessos, o projeto cria efeitos colaterais amplos e permanentes. Não é apenas sobre o 8 de janeiro. É sobre reconfigurar o sistema penal brasileiro a partir de um caso específico, com endereço político identificável. Sinto ser necessário repensar essa percepção.

A comparação entre Câmara e Senado escancara uma fratura institucional. Na Câmara, o texto foi apresentado como gesto de pacificação. Mas o próprio relatório assume o foco na redução de penas e na sobreposição dos crimes ligados à ruptura democrática. Politicamente, o projeto nasceu com destinatário reconhecível e foi associado à possibilidade de beneficiar Jair Bolsonaro e outros condenados ou denunciados ligados à trama golpista.

No Senado, a CCJ se converte em instância decisiva. A relatoria de Esperidião Amin e a existência de voto em separado indicam resistência a transformar o Código Penal e a Lei de Execução Penal em instrumentos de acomodação política conjuntural. Não se trata de revanche, mas de preservação institucional.

O que está em julgamento, portanto, não é apenas um projeto de lei. 

O que está em jogo é a própria ideia de justiça como fundamento da República. 

Defender a integridade das condenações proferidas após os atos de 8 de janeiro não é defender vingança nem radicalismo judicial; é sustentar que houve crime, houve prova, houve devido processo legal e houve decisão legítima da mais alta Corte do país. 

Qualquer tentativa de reescrever esse desfecho por meio de engenharia legislativa equivale a admitir que a lei pode ser dobrada depois do fato, desde que o réu disponha de poder suficiente para constranger o sistema. Democracias não sobrevivem a esse tipo de concessão. A História, quando cobra, não aceita alegações de boa intenção.

Dosimetria casuística nem hoje, nem nunca.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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