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Fernando Nogueira da Costa

Professor Titular do IE-UNICAMP

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Identitarismo e Identidade Ideológica

É possível defender direitos LGBT+ e o livre mercado irrestrito

São Paulo (SP) - 21/06/2025 - 29ª Parada do Orgulho LGBT+ (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Espera-se todo defensor da pauta identitária com reinvindicações de direitos na área de costumes, relacionados à anti homofobia, ao antirracismo e ao feminismo, ser de esquerda. Daí nasce a questão: por qual razão existe pobre, gay e negro de direita? O conservadorismo tem raízes religiosas?

Na realidade, defender direitos civis e pautas identitárias não implica, por si só, ser de esquerda, embora exista uma forte associação histórica entre essas agendas e tradições de esquerda. A relação é contingente, não necessária. 

Para entender isso, é preciso separar três dimensões distintas: economia política, cultural/moral e formas de pertencimento social.

Em primeiro lugar, a pauta identitária é distinta da posição econômica do indivíduo. As lutas contra racismo, homofobia e desigualdade de gênero dizem respeito a direitos civis, reconhecimento e cidadania, não automaticamente a regimes de propriedade, redistribuição ou organização da economia.

Por isso, é possível defender direitos LGBT+ e o livre mercado irrestrito. Há gente combatente contra o racismo, mas rejeita políticas redistributivas favoráveis aos mais pobres por achar ter saído da pobreza por conta própria. Outros apoiam a igualdade formal sem questionar desigualdades estruturais da sociedade.

A esquerda, em sua tradição combativa, tende a articular reconhecimento meritório e redistribuição de renda para quem se encontra na pobreza absoluta. Mas nada impede o reconhecimento de valor profissional ser desacoplado da redistribuição e isto abre espaço para posições neoliberais ou mesmo conservadoras em economia com discurso de direitos individuais.

Por qual razão existem pobres de direita? Não se trata de “falsa consciência” no sentido simplista. Há mecanismos sociais concretos capazes de explicarem isso.

O primeiro diz respeito à moralidade e à ordem conservadora. Para muitos grupos populares, a direita oferece valorização do trabalho, disciplina e esforço. 

Ao mesmo tempo faz promessa de ordem e segurança pública. Infelizmente, incentiva a rejeição de elites culturais (universitárias e artísticas), percebidas como distantes. Esses elementos costumam ser mais tangíveis diante promessas abstratas de redistribuição de renda.

Em contextos periféricos, nos quais o Estado aparece, seja como ausente – favela é autoconstrução sem planejamento estatal –, seja como burocrático por exigência de documentos inexistentes para os desfavorecidos, a retórica antiestatal encontra ressonância real, mesmo entre os mais pobres. Pior, é quando o governo é mostrado em campanha midiática como corrupto.

Lawfare é o uso estratégico do Direito como arma de guerra (ou substituto de armas) para destruir adversários políticos, com aparência de legalidade, mas com fins ilícitos ou políticos. Por exemplo, o lawfare na Operação Lava Jato utilizou o sistema jurídico de forma abusiva, transformando a lei em arma para atingir objetivos políticos, especialmente contra adversários como o ex-presidente Lula. 

Ocorreu através de ações judiciais, vazamentos seletivos e pressão midiática. Desrespeitou garantias do devido processo legal e distorceu o combate à corrupção para fins políticos, com uso indevido da prisão preventiva e da colaboração premiada para forçar confissões. O sistema de justiça (Ministério Público e juízes) foi usado para perseguir pessoas e o Partido dos Trabalhadores, disfarçando perseguição política sob o manto do combate à corrupção. 

Muitos pobres, doutrinados pela Teologia da Prosperidade se veem como “empreendedores em potencial”, futuros proprietários, ou membros de uma classe média desejada por mobilidade social. A identidade política pode se basear mais na trajetória aspirada em vez de ser na condição presente.

Então, existem gays de direita e negros de direita porque identidade social não determina automaticamente identidade política. É possível ter prioridades diferentes: uma pessoa pode valorizar mais religião, família ou ordem moral diante políticas identitárias. Desse modo, rejeita a ideia de pertencimento a um “grupo político” definido pela identidade.

Há gays e negros defensores de igualdade jurídica estrita, mas com rejeição de políticas afirmativas e ênfase no mérito individual. Essa posição individualista é coerente dentro de uma visão neoliberal-conservadora.

A politização da identidade também é possível de ser vista como redutora da complexidade individual. Propiciaria a instrumentalização partidária e seria fonte de polarização social. Essa reação à politização da identidade geraria adesão reativa a discursos de direita.

O conservadorismo não é necessariamente religioso, mas historicamente se alimentou da religião como fonte de legitimidade moral.

O conservadorismo moral defende normas tradicionais de família, gênero e sexualidade, geralmente ancorado em religiões organizadas. Está muito presente no conservadorismo popular contemporâneo.

O conservadorismo institucional defende tradição, estabilidade e gradualismo. Ele pode até ser secular, isto é, quem não está sujeito a nenhuma ordem religiosa. Valoriza instituições como heranças históricas, não dogmas religiosos. O primeiro teórico político explicitamente conservador é geralmente considerado o irlandês Edmund Burke (1729-1797), membro do parlamento londrino pelo Partido Whig. 

O conservadorismo econômico faz a defesa da propriedade, da hierarquia e do mercado. Coexiste com laicismo e até com liberalismo cultural limitado.

No Brasil atual, esses três elementos se fundem, sobretudo via religiões evangélicas atuantes como redes sociais e políticas. Há produção de sentido moral e pertencimento com a mediação concreta entre o fato de o Estado estar ausente e a vida cotidiana necessitada de apoio.

O ponto decisivo é como as dimensões se articulam. O cenário contemporâneo é marcado por desacoplamentos: direitos civis sem redistribuição; redistribuição sem ampliação de liberdades; moral conservadora com retórica antielitista; liberalismo somente econômico com diversidade simbólica.

Isso explica por qual razão a pauta identitária pode migrar para o centro ou até para a direita neoliberal. Infelizmente, grupos socialmente vulneráveis podem aderir à direita. A clivagem esquerda–direita já não explica tudo sozinha.

Em síntese, defender direitos identitários não define automaticamente alguém como de esquerda. Pobre, negro ou gay “de direita” não é paradoxo: é resultado de múltiplas dimensões de pertencimento. O conservadorismo pode ser religioso, mas não se reduz à religião.

A chave analítica é observar quais dimensões se combinam: economia, moral, identidade, Estado e poder. Ao fim e ao cabo, posições políticas emergem menos da identidade isolada e mais da forma como experiências sociais concretas são traduzidas em visões de mundo coerentes, embora tensionadas internamente.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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