O caso Mascaro: por que sua demissão não foi um acidente, mas sim a reação do sistema a ideias revolucionárias
O afastamento do principal althusseriano brasileiro revela como a dominação reage quando a crítica deixa a academia e passa a formar consciência social
A demissão do professor Alysson Mascaro da Universidade de São Paulo não pode ser compreendida como um episódio isolado, administrativo ou meramente disciplinar. Ela expressa algo muito mais profundo: a reação orgânica de um sistema de dominação quando se sente ameaçado por ideias que deixam de ser toleráveis. Não se trata de um erro, de um excesso ou de um desvio. Trata-se de um mecanismo clássico de defesa da ordem.
Mascaro não era apenas um professor respeitado de filosofia do direito. Tornou-se, nos últimos anos, um intelectual público de amplo alcance, capaz de traduzir o marxismo — e, em especial, a teoria de Louis Althusser — para milhares de jovens, trabalhadores e estudantes que passaram a enxergar o Estado, o direito e a própria universidade não como instâncias neutras, mas como estruturas históricas de reprodução do poder de classe. Foi exatamente aí que ele ultrapassou o limite do aceitável.
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O sistema tolera a crítica enquanto ela é ornamental. O marxismo acadêmico, confinado a disputas bibliográficas, seminários fechados e linguagem hermética, não incomoda. Ao contrário: serve muitas vezes como álibi de pluralismo. O problema surge quando essa crítica ganha circulação social, quando se torna inteligível, quando forma consciência. Nesse momento, o intelectual deixa de ser decorativo e passa a ser perigoso.
Mascaro fazia algo que o sistema não perdoa: desmontava seus próprios alicerces. Ao revelar o direito como forma ideológica, o Estado como aparelho de classe, a universidade como aparelho ideológico e a neutralidade como ficção funcional ao capital, ele atingia o coração da dominação contemporânea. Não propunha reformas cosméticas nem disputava cargos. Questionava a estrutura.
É por isso que o ataque não se deu no plano das ideias, mas no plano moral. Em sociedades que preservam uma aparência liberal, a repressão direta é substituída pela deslegitimação ética. Acusações morais individualizam o conflito, desviam o debate estrutural e tornam a defesa impossível no terreno público. A ideia não precisa ser refutada; basta que o portador seja neutralizado.
O papel desempenhado por veículos associados ao progressismo liberal internacional nesse processo não é acidental. Esse campo aceita pautas identitárias, disputas simbólicas e moralização do discurso, mas reage com hostilidade quando alguém conecta opressão à economia política e expõe o capitalismo como sistema. A crítica estrutural não cabe nesse arranjo, porque ameaça os próprios financiadores, as ONGs, as fundações, a mídia e as universidades enquanto engrenagens de um mesmo sistema.
A USP, como toda universidade de elite, tolera o marxismo enquanto ele não se volta contra ela própria. Quando um professor revela a universidade como aparelho ideológico de Estado, como filtro de classe e como instância de legitimação da ordem, a reação é previsível. Instituições não acolhem quem expõe sua função histórica real.
O roteiro é antigo e conhecido. Zola foi criminalizado quando desafiou o Estado francês ao denunciar o caso Dreyfus. Pasolini foi perseguido quando desnudou a família, a moral e o consumo como formas de dominação. Intelectuais marxistas foram expurgados sempre que suas ideias passaram a circular para além dos muros acadêmicos. O sistema não debate com quem ameaça seus fundamentos. Ele remove.
Não se trata apenas de Mascaro. O gesto cumpre uma função pedagógica: produzir medo, impor autocensura e delimitar o campo do aceitável. A mensagem é clara para todos os que pensam: critique costumes, critique indivíduos, critique linguagem. Não critique o sistema.
Por isso, a demissão de Alysson Mascaro não foi um acidente. Foi a reação automática de um aparelho ideológico ameaçado, um movimento de autopreservação de uma ordem que depende, acima de tudo, da crença na legalidade, na neutralidade e na inevitabilidade do capitalismo.
Quando a crítica revela que nada disso é natural, o sistema faz o que sempre fez: silencia. E, ao fazê-lo, acaba confirmando, de forma brutal, tudo aquilo que essa crítica denunciava.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




