O dízimo é o milagre econômico de Jesus que salva os mais ricos e condena os mais pobres
A concentração de renda entre pastores evangélicos milionários gera desigualdade social e econômica na sociedade, reflete Ricardo Nêggo Tom
Dona Maria Auxiliadora está há 35 anos servindo a Jesus dentro de uma igreja evangélica. Durante esse período, ela peregrinou por algumas denominações até que se “estabeleceu” na Igreja do Capitalismo Divino, onde, além de contribuir fielmente com o seu dízimo, compra um caro suco de uva que é servido na santa ceia da igreja e ainda participa de campanhas milagrosas que custam mais alguns reais do seu apertado orçamento. Aos 79 anos de idade, dona Auxiliadora recebe uma pensão de R$ 3.500,00 por mês, da qual ela paga o seu aluguel, as contas da casa, faz o supermercado, ajuda um neto desempregado e, quando sobra alguma coisa, ela come algo diferente ou faz um passeio para aliviar o estresse do dia a dia.
Apesar do sobrenome, a última coisa que dona Maria faz é auxiliar a si mesma. Recentemente, a fiel evangélica precisou ser submetida a uma cirurgia de emergência para retirada de um tumor no intestino e enfrentou algumas dificuldades. Sem plano de saúde e sem condições de realizar exames em clínicas particulares, ela foi obrigada a entrar na fila do SISREG em busca de atendimento. Devido à urgência do seu caso e à idade um pouco avançada, dona Maria entrou na lista de prioridades no atendimento e conseguiu realizar todos os exames necessários, assim como a cirurgia que restabeleceu a sua saúde. Glória a Deus? Não! Glória ao SUS!
Observando atentamente a história de dona Auxiliadora, comecei a refletir a partir de alguns aspectos pelos quais ela — movida por uma fé em Jesus condicionada pelo empresário dono da igreja que ela frequenta — não teria condições de refletir e avaliar o estado de lobotomia religiosa no qual se encontra. A começar pela sua renda de R$ 3.500,00, da qual ela precisa retirar obrigatoriamente R$ 350,00 (10%) todo mês para oferecer a Deus e garantir a sua salvação. O capitalismo é selvagem, mas é religioso. Ô, glória! Dona Auxiliadora paga R$ 700,00 de aluguel numa modesta casa de vila com quatro cômodos, em Guaratiba, zona sudoeste do Rio de Janeiro, lá onde Judas perdeu as botas vendendo Jesus por 30 moedas de ouro, onde mora com seu neto desempregado.
Como ela ainda não subiu aos céus para a glória eterna na companhia de Jesus, ela precisa se alimentar. Afinal, saco vazio não para em pé. É inegável que os preços dos produtos nos supermercados registraram uma queda, mas alguns itens ainda continuam caros, e dona Maria precisa comer por trinta dias. Mesmo descontando as horas de jejum que ela faz por semana, seguindo recomendações religiosas, ela não consegue economizar tanto com a sua alimentação. Isto posto, a nossa guerreira fiel gasta, em média, R$ 1.000,00 por mês com supermercado. Até aqui, já registramos R$ 2.050,00 em despesas para dona Auxiliadora pagar. Mas as obrigações financeiras não param por aí, e não há milagre que faça as companhias de água, luz e internet deixarem de cobrar as faturas pelos serviços prestados.
Dona Maria abre os boletos como se estivesse abrindo um livro da Bíblia que ela carrega a tiracolo para qualquer lugar que esteja indo e, para sua decepção, não encontra o mesmo alento que nos textos sagrados. Se bem que muitos textos da Bíblia nos causam muito mais aflição do que alívio. E assim está escrito no livro da Light, capítulo do mês de novembro, versículo 219 kWh de consumo: R$ 250,00. No livro da CEDAE, a profecia de consumo registra R$ 170,00, e no livro da internet — já que dona Maria é uma das tias do zap que não pode ficar sem wi-fi, porque precisa receber as notícias do mundo distópico em que vive — o profeta Claro/Net a obriga ao pagamento de R$ 175,00 para que ela continue a receber diretamente no seu celular vídeos de pastores efetuando curas milagrosas e a alertando para que nunca deixe de dar o dízimo. Do contrário, a sua vida estaria completamente condenada à miséria e ao inferno.
Até aqui, R$ 2.455,00 já foram devorados pelos demônios dos impostos, e quando dona Maria pensa que pode lhe sobrar R$ 1.005,00, ela se lembra de que precisa comprar os remédios para pressão, colesterol, coração e reumatismo. Também se lembra de que precisa “abençoar” o neto de 22 anos, que está desempregado e precisa de dinheiro para terminar um curso que pode lhe garantir um emprego no futuro. Mais R$ 300,00 do curso do neto e mais R$ 100,00 para ele comprar uma calça, pois a única que ele tem está tão surrada que ele já está sendo chamado de Jó no grupo jovem da igreja. E, de repente, surge uma campanha milagrosa na igreja, onde os fiéis são convencidos a fazer uma doação especial que varia entre R$ 100,00 e R$ 1.000,00 — lembrando que, quanto maior for a sua oferta, maior será a bênção que Deus lhe dará em troca —, e dona Auxiliadora embarca de cabeça na fé e na certeza de que, se ela oferecer tudo o que lhe restou de pensão, Deus lhe dará em dobro.
O resultado quase sempre não é o esperado, e dona Maria, que ainda está no décimo oitavo dia do mês, não tem mais dinheiro nenhum no bolso. Fiquei pensando nesses 35 anos em que ela contribui fielmente com 10% da sua renda todo mês para que o reino do seu pastor seja próspero na terra. Imagine esse valor sendo depositado numa conta poupança ou sendo investido na melhoria de suas condições de vida. Certamente, dona Maria não teria precisado do SUS (que o seu pastor costuma dizer que é assistencialismo de político endemoniado esquerdista) ou teria alguma reserva para desfrutar uma velhice mais tranquila. No entanto, ela é convencida de que o seu dízimo, e que toda oferta que ela dá para Deus, digo, para o empresário dono da igreja que ela frequenta, faz o dinheiro que lhe sobra render. Uma lógica que atribui a Jesus o caráter de um David Copperfield, que, por meio do ilusionismo religioso, faz milagres financeiros na vida dos fiéis.
Sem contar que o dízimo pode ser considerado um dos fatores determinantes na concentração de renda nas mãos de poucos privilegiados. Muitos pastores são super-ricos e não pagam impostos, uma vez que seus bens são incluídos como patrimônio da instituição religiosa que eles dirigem, e eles acabam sendo ainda mais abençoados com a isenção tributária que a Constituição oferece às igrejas. Tal concentração de renda nas igrejas impede que a economia seja movimentada em outros setores e que os próprios fiéis movimentem suas vidas financeiras com mais independência e dignidade. Ah, mas as igrejas fazem trabalhos sociais e acabam se fazendo presentes onde o Estado se faz ausente. Bom! Se levarmos em conta que todos os convertidos e recuperados nesses “projetos” hoje estão contribuindo com 10% de seus salários na mesma igreja que os ajudou, chegaremos à conclusão de que eles estão pagando pela ajuda recebida. No capitalismo, nada é de graça. Nem a ajuda divina.
Enquanto empresários da fé aumentam milagrosamente os seus patrimônios e adquirem emissoras de TV, rádio, carros de luxo, jatinhos e aviões particulares, abrem instituições financeiras e investem alto no lobby político que elege pastores e afins para representarem o seu projeto de poder religioso nos parlamentos brasileiros, muitas donas Marias que os seguem como ovelhas estão vendendo o vinho para comprar o pão da santa ceia de suas casas. Uma covardia que, se Deus existe — e eu ainda acredito na sua existência —, precisa ser cobrada e punida em algum lugar do universo. Enquanto uns vivem pela fé, outros desfrutam do lucro que a fé alheia lhes pode dar. Acho que podemos concluir que o dízimo é o milagre econômico de Jesus que salva os mais ricos e condena os mais pobres.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




