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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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O homem que vigia o mundo nuclear

A New Yorker expõe como inspeções, relatórios e diplomacia calibrada sustentam a paz nuclear num planeta onde guerras cercam usinas e tratados enfraquecem

REUTERS/Leonhard Foeger (Foto: REUTERS/Leonhard Foeger)

Leio há muitos anos, com certa regularidade, os principais artigos da revista The New Yorker, fundada em 1925 e desde então convertida em uma das colunas mestras da cultura intelectual norte-americana. Ao longo de um século, a revista não apenas acompanhou o seu tempo: ajudou a interpretá-lo, tensioná-lo e, muitas vezes, antecipá-lo. Foi ali que vozes como J. D. Salinger, Truman Capote e John Updike encontraram espaço para amadurecer uma escrita que cruzava literatura, jornalismo e pensamento crítico. Não é casual que seus textos circulem com igual peso em redações, universidades e centros de pesquisa. A New Yorker construiu uma tradição em que a reportagem longa não se limita a informar, mas organiza o mundo em camadas históricas, morais e políticas. É dentro desse legado — exigente, sofisticado e globalmente influente — que se insere o artigo de Robin Wright.

Em Going Nuclear Without Blowing Up (Algo como “Lidando com o nuclear sem provocar uma explosão”), Wright não escreve apenas sobre energia nuclear. Ela escreve sobre poder, fragilidade institucional e risco civilizatório. Ao acompanhar a rotina e as decisões de Rafael Mariano Grossi, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, o texto revela um mundo em que a estabilidade global depende menos de grandes discursos e mais de inspeções técnicas, relatórios precisos e negociações conduzidas no limite da exaustão política e, em alguns casos, do perigo físico real.

Grossi surge como personagem central de uma era marcada pela erosão do multilateralismo. A AIEA foi concebida para um contexto de Guerra Fria, em que dois grandes blocos mantinham canais previsíveis de negociação e controle. O cenário atual é radicalmente distinto. Hoje, o risco nuclear não se concentra apenas nos arsenais declarados, mas na disseminação silenciosa de capacidades, no acúmulo opaco de material físsil e na combinação explosiva entre instabilidade política, conflito armado e infraestrutura nuclear sensível.

O episódio da usina de Zaporizhzhia, no coração da guerra entre Rússia e Ucrânia, ocupa lugar simbólico no artigo. Pela primeira vez na história, uma grande central nuclear se transforma em território disputado militarmente. Grossi e sua equipe atravessam zonas de combate para tentar preservar sistemas mínimos de segurança, conscientes de que um erro, um ataque mal calculado ou uma falha prolongada de energia poderia produzir uma catástrofe transnacional. Não se trata mais de prevenção técnica em tempos de paz, mas de contenção nuclear em ambiente de guerra aberta.

Robin Wright deixa claro que Grossi compreende algo essencial: a ameaça nuclear contemporânea não se resume à proliferação vertical, ao aumento do número de ogivas em países que já as possuem. O risco maior está na proliferação horizontal, na possibilidade de que múltiplos Estados alcancem rapidamente o limiar tecnológico necessário para produzir armas nucleares. Esse cenário, menos visível e mais difuso, é potencialmente mais desestabilizador do que as antigas corridas armamentistas.

O Irã aparece como um dos pontos mais delicados dessa equação. Sob a liderança de Grossi, a AIEA apontou falhas graves de transparência e inconsistências em declarações oficiais, sem afirmar a existência de um programa ativo de armas nucleares. Essa distinção, aparentemente técnica, é politicamente explosiva. Cada palavra de um relatório pode justificar sanções, negociações ou ações militares. Grossi atua, portanto, em um campo minado linguístico, onde precisão não é virtude acadêmica, mas instrumento de contenção geopolítica.

O texto também revela a solidão estrutural da AIEA. A agência depende da cooperação dos Estados que inspeciona, mas não dispõe de meios coercitivos. Pode verificar, relatar, advertir — mas não impor. Sua autoridade é técnica e moral, não militar. Em um sistema internacional cada vez mais fragmentado, essa limitação se torna evidente. Grossi reconhece, com discrição diplomática, que o sistema ONU sofre de um déficit crescente de capacidade executiva. As normas existem; o cumprimento, nem sempre.

Há, ainda, uma dimensão humana que a reportagem explora com inteligência. Grossi é apresentado como alguém disciplinado, metódico, fisicamente ativo, ligado à família e à vida comunitária. Não como adorno narrativo, mas como contraponto à carga psicológica de lidar diariamente com cenários de risco extremo. A gestão do perigo nuclear não é feita apenas por algoritmos, sensores e protocolos, mas por indivíduos capazes de resistir à pressão política sem ceder ao alarmismo nem à complacência.

Ao final da leitura, fica evidente que Going Nuclear Without Blowing Up é mais do que um perfil. É um retrato do nosso tempo. Um tempo em que a paz nuclear depende de detalhes invisíveis ao grande público, de relatórios técnicos lidos com lupa por chancelerias e comandos militares, de visitas feitas sob escolta armada a instalações que jamais deveriam estar em zonas de guerra. Rafael Grossi aparece menos como herói e mais como guardião de um equilíbrio precário, sustentado por instituições que resistem, apesar de tudo, ao desgaste do mundo contemporâneo.

É por isso que esse artigo importa. Ele não fala apenas de energia nuclear. Fala da fragilidade da ordem internacional, da sobrevivência do multilateralismo técnico e da fina linha que separa controle e colapso. A New Yorker, fiel à sua melhor tradição, não nos entrega respostas fáceis. Nos obriga a encarar a pergunta mais incômoda de todas: o que acontece quando a racionalidade técnica se torna a última barreira entre o mundo que conhecemos e o desastre que insistimos em flertar.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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