O Negócio da Fé
É curioso observar como muitos protestantes negam que o catolicismo também seja uma religião evangélica
Minha matéria sobre a Arca de Noé já deixou claro o que penso das religiões, especialmente das de raiz judaico-cristã, nas quais se incluem o catolicismo e, queiram ou não os ditos evangélicos, todas as suas derivações. É curioso observar como muitos protestantes negam que o catolicismo também seja uma religião evangélica, como se o simples ato de romper com Roma os tornasse proprietários exclusivos do Evangelho. Essa negação é menos teológica e mais psicológica: quem adere ao novo precisa desqualificar o antigo. É a forma de justificar a própria escolha, de convencer-se de que abandonou as trevas em favor da luz. A economia ajuda a compreender esse comportamento. Todo manual introdutório de Economia ensina que o ser humano faz escolhas dentro de suas restrições orçamentárias. Paul Samuelson falava em canhões e manteiga; Mário Henrique Simonsen, misógino, preferia loiras, ruivas e morenas. Em ambos os casos, a lógica é a mesma: o trade-off, a impossibilidade de ter tudo ao mesmo tempo. Escolher é renunciar. O raciocínio mutuamente exclusivo que rege o consumo também governa a fé. Nas religiões, essa exclusividade assume a forma da verdade única. Ao se abandonar o “falso” pelo “verdadeiro”, presume-se que tudo o que não está nas regras que conduzem à luz leva inevitavelmente às trevas. Assim nasce a ideia de que o outro é uma ameaça existencial, e não apenas um diferente. É o embrião das guerras santas — a eterna luta do bem contra o mal. A história é pródiga em exemplos. As Cruzadas mobilizaram exércitos e fortunas em nome de um Cristo que pregava o amor, transformando a fé em empresa militar e comercial. A Inquisição, sob o pretexto de purificar a alma, ergueu uma vasta burocracia eclesiástica e consolidou o poder político da Igreja. As guerras de religião que devastaram a Europa no século XVII foram o instrumento ideal para unir reinos sob um mesmo dogma e justificar o avanço econômico de uns sobre outros. E, nas colônias, a evangelização ofereceu o discurso perfeito para a escravidão e o saque — tudo “em nome de Deus”. Mas não é apenas passado. O genocídio que testemunhamos hoje em Gaza mostra como a retórica do “povo escolhido” e da “terra prometida” continua servindo à dominação e ao lucro. A guerra, travestida de defesa da fé ou da civilização, perpetua-se porque alimenta interesses econômicos concretos: a indústria bélica, o controle territorial, o poder político e o fanatismo ideológico. Nada é mais eficiente para perenizar uma guerra do que uma religião que fala em eternidade. Quando o inimigo é o mal encarnado, o cessar-fogo é heresia. Costuma-se dizer que os pecadores são os homens e não as religiões, como se as doutrinas fossem inocentes dos atos de seus sacerdotes. É uma desculpa conveniente. As regras, os rituais e as hierarquias foram criados por quem sabia exatamente o que fazia. O pecado, a culpa e o perdão formam um ciclo produtivo. A guerra é apenas sua versão armada. Onde há fé, há poder, e onde há poder, há lucro.
O cristianismo – mas não só -- aprendeu a transformar a salvação em ativo financeiro: as indulgências de ontem são os dízimos de hoje; os templos de pedra, hoje, são palcos eletrônicos; a confissão privada virou espetáculo transmitido em alta definição. A lógica é sempre a mesma: vender alívio para a culpa, segurança contra o medo e sentido diante do caos. O púlpito é o balcão onde se negocia a eternidade. As religiões, em suma, operam como empresas que criam necessidades, fixam preços simbólicos e monopolizam a esperança. E, como todo monopólio, sustentam-se na exclusão do concorrente. A luta entre o bem e o mal é apenas a versão metafísica da disputa por mercado. No fim, o sagrado é um negócio que promete o infinito e cobra em parcelas semanais.
Nota do autor:
Este artigo faz parte de uma reflexão mais ampla sobre o papel das instituições religiosas na formação das estruturas econômicas e sociais do Ocidente. Ao longo da história, a fé serviu como mecanismo de coesão e de controle, mas também como instrumento de exploração. A análise aqui proposta não se dirige à crença pessoal, mas ao uso político e financeiro da religião como ferramenta de poder.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




