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Maurício Rands

Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

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O pensamento autoritário é binário

Entre acertos e desvios, o STF expõe a falácia do “amor ou ódio” e revela a complexidade das instituições democráticas

Brasília (DF) - 08.01.2024 - Réplica da Costituição Brasileira instalada em frente ao STF (Foto: João Risi/PR)

Todo pensamento autoritário é binário. Durante a ditadura, no colégio São Luís, eu não entendia a música que tocava no recreio: Brasil, ame-o ou deixe-o. Perguntava-me por que deveríamos sair do país se não o amássemos. Parecia-me que amar era algo que devíamos consagrar aos nossos pais e à menina que mal olhava para nós. Depois, vendo um “abaixo a ditadura” num muro, perguntei a papai: “ditadura não havia apenas na Uganda de Idi Amin Dada?”

Hoje, uns amam, outros odeiam o STF. Detestam-no todos os que não gostam dos indígenas, dos gays, da igualdade racial e do empoderamento feminino. Também os que adoram arminhas ou acham que a ultradireita nunca tramou uma intervenção militar. Amam o Supremo os que perderam as esperanças de avanço social nos costumes diante de um Congresso Nacional retrógrado, assim como os que reconhecem o papel do STF na preservação de uma democracia que esteve ameaçada por gente que chegou ao poder graças a ela.

A semana foi pródiga em desmentir a lógica do amor ou ódio. O ministro Fachin atraiu elogios ao anunciar que vai promover um código de conduta para os seus colegas, informado que deve estar sobre o que fizeram os seus pares no verão passado. O ministro Flávio Dino autorizou o avanço das investigações contra parlamentares corruptos, vendedores de emendas que sequestraram o orçamento federal. Determinou operação na principal assessora de Arthur Lira, o poderoso ex-presidente que hoje opera nas sombras. Mas foi esse mesmo tribunal que envergonhou o país ao ver um de seus ex-presidentes, o ministro Toffoli, viajando num jatinho para ver o jogo do Palmeiras com um advogado sócio do Banco Master. Para logo depois aceitar a competência do STF para o caso e decretar o sigilo máximo no processo. Mas foi mera coincidência. Só falaram dos infortúnios do amado Palestra Itália.

A opinião pública não ficou menos irritada ao saber que Viviane Moraes e os filhos do ministro Alexandre Moraes tinham um contratinho de R$ 3,6 milhões mensais com o mesmo Banco Master que acabara de surrupiar dezenas de bilhões dos fundos de aposentadoria dos servidores do Rio, DF, Amapá e Maceió. A lista de desvios é longa. A justa indignação cidadã contra esses abusos de ministros do STF é dupla. Primeiro, pela imoralidade em si. Depois, porque a má conduta de seus membros enfraquece a legitimidade das suas decisões. E isso debilita a punição à corrupção, ao golpismo e aos abusos do pior Congresso Nacional da história.

Mas a realidade não é binária. Nem toda instituição é sempre certa ou errada. Justa ou injusta. Honesta ou desonesta. Na mesma semana, o mesmo ministro da competente família de advogados brinda o país com uma decisão irretorquível. Depois do vexame da Câmara ao aprovar uma anistia parcial disfarçada de “PL da dosimetria” e depois de a Câmara manter o mandato de uma nobre deputada foragida, em desobediência à decisão expressa da instituição que a Constituição mandou falar por último em questões constitucionais.

Alguns se apressaram a enxergar um inexistente erro técnico na decisão do ministro Alexandre Moraes. A Câmara estaria certa porque a condenação de Carla Zambelli teria mesmo que ser apreciada pelo plenário, pois a hipótese do inciso VI do art. 55 da CF (“perderá o mandato o deputado ou senador que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”) deveria estar submetida ao procedimento do § 2º do mesmo artigo, ou seja, à decisão por maioria absoluta do plenário da Casa. Não viram os apressados que a condenação da deputada pelo STF na AP 2428, transitada em julgado, foi expressa ao determinar a perda do mandato com base no § 3º do referido dispositivo da CF. Sim, nessa decisão a deputada também foi condenada com base no inciso IV do art. 55, que prevê a suspensão dos direitos políticos. Ou seja, a decisão do STF, que deve ser cumprida por força da Constituição, foi clara ao determinar que a Mesa da Câmara (e não o plenário) deveria praticar o ato declaratório vinculado de perda do mandato da parlamentar.

Quando o presidente e o plenário da Câmara deliberaram pela manutenção do mandato de Carla Zambelli, descumpriram a decisão definitiva do STF e, portanto, violaram a CF. Quando o ministro Alexandre Moraes decidiu anular a deliberação inconstitucional, ele estava tecnicamente correto. Afinal, todos devem obediência à decisão definitiva da Corte Suprema. Se o Poder Legislativo a descumpre, quem mais também não vai querer descumprir as decisões judiciais?

A mão que afaga é a mesma mão que apedreja, como disse o poeta Augusto dos Anjos. Numa mesma semana, o STF acertou e errou em diferentes deliberações, provando que a realidade institucional não é binária. Que a democracia é complexa. Suas instituições erram e acertam. Não são perfeitas ou imperfeitas sempre. O tudo ou nada se coaduna mais com o pensamento autoritário e antidemocrático.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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