Os jogos espúrios do Centrão e da extrema-direita
O corporativismo mafioso que domina a Câmara, hoje majoritariamente controlada pelo Centrão e pela extrema direita é escandaloso.
Nas últimas semanas, o país voltou a conviver com a face mais sombria de sua política com a ousadia crescente de um Congresso dominado por forças do Centrão e da extrema direita, que operam sem pudor para preservar seus privilégios, blindar aliados condenados e subverter os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
O avanço simultâneo de manobras legislativas, pressões explícitas sobre o governo federal com chantagens orçamentárias revela um ambiente institucional intoxicado por interesses particulares e pela lógica da barganha, em detrimento absoluto do interesse público.
Nesse cenário, a decisão do ministro Gilmar Mendes, que reacendeu o debate sobre os limites do poder parlamentar na abertura de processos contra ministros do STF, apenas expôs com nitidez ainda maior, o projeto autoritário e oportunista que une parte significativa do Congresso em torno de pautas que afrontam a Constituição e colocam a democracia sob tensão permanente.
Na atual configuração política, indubitavelmente, o país está sob a égide de parlamentares nefastos do chamado Centrão. Legislam prioritariamente em defesa de seus interesses individuais e dos mais variados segmentos que os financiam a fim de garantirem seus interesses, notadamente suspeitos. O senador Ciro Nogueira (PP-PI), por exemplo, personagem emblemático do Centrão, tem sido frequentemente citado em diversas reportagens como um dos principais aliados políticos de Daniel Vorcaro, proprietário do Banco Master, investigado na Operação Compliance Zero, por fraudes financeiras de mais de R$ 12 bilhões. As suspeitas de que Nogueira alterou um projeto de lei com o objetivo de “favorecer Vorcaro” relacionam-se à acusação de que sua influência política teria sido mobilizada em articulações que acabaram beneficiando os interesses do banqueiro, inclusive em operações envolvendo o Banco Master.
Vis a vis, os parlamentares de extrema direita são mais diretos em seus movimentos espúrios, o que facilita aos demais campos políticos um enfrentamento mais direto, como no caso do parecer absolutamente descabido e surreal apresentado pelo deputado Diego Garcia (Republicanos-PR), relator do processo de cassação de Carla Zambelli (PL-SP) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Em um gesto que afronta acintosamente o poder judiciário, o parlamentar defende a absolvição da deputada sob a justificativa de que não há provas suficientes para retirar seu mandato, apesar de Zambelli já ter sido condenada em duas ações pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para completar o ridículo desse parecer de caráter indevidamente revisional, o deputado chegou ao ponto de invocar o princípio do direito penal “in dubio pro réu”, convertido no ambiente parlamentar em “in dubio pro mandato”, para sustentar, de forma enfática, que Carla Zambelli não cometeu crime e, portanto, não pode ser cassada.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), tem se esquivado de decidir o que já deveria ter sido resolvido de imediato, como a cassação dos deputados: Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli e Alexandre Ramagem, envolvidos em práticas e condutas frontalmente incompatíveis com o exercício de seus mandatos.
O corporativismo mafioso que domina a Câmara, hoje majoritariamente controlada pelo Centrão e pela extrema direita é escandaloso. Mesmo diante de decisões judiciais que determinam suas cassações, seguem inexplicavelmente preservados os mandatos de Carla Zambelli (PL-SP), já condenada duas vezes pelo Supremo Tribunal Federal, cujas penas somadas ultrapassam quinze anos de prisão; de Alexandre Ramagem (PL-RJ), foragido desde setembro e condenado por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe e participação em organização criminosa liderada pelo ex-presidente; e de Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que responde por coação no curso do processo em razão de sua atuação nos Estados Unidos, país onde vive desde março deste ano.
De acordo com o trecho da Constituição mencionado pelo ministro do STF, Alexandre Moraes em sua decisão, será destituído do mandato o parlamentar que “deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada”.
Além desse quadro de disfuncionalidades, o custo gerado aos cofres públicos é exorbitante. Segundo dados divulgados pelo G1, o mandato de Eduardo Bolsonaro consumiu R$ 1.074.595,77; o de Carla Zambelli, R$ 521.646,46; e o de Alexandre Ramagem, R$ 154.215,30. Somados, esses três parlamentares já drenaram R$ 1.750.457,53 do orçamento federal. É inadmissível que o povo continue financiando mandatos que não cumprem sua função constitucional, enquanto a Câmara permanece inerte diante de violações explícitas ao decoro, às regras regimentais e às decisões judiciais.
E a afronta não para por aí. Como se o rombo ao erário não fosse suficiente, a decisão divulgada nesta quinta-feira pelo ministro Flávio Dino revelou mais uma manobra que avançava sorrateiramente dentro da Câmara, sem qualquer contenção por parte de Hugo Motta. Atendendo a um pedido do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Dino determinou que as emendas indicadas por Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem sejam suspensas, já que ambos estão no exterior e não exercem de fato o mandato. A medida resgata os princípios da legalidade e da moralidade administrativa, justamente aqueles que a direção da Câmara tem insistido em ignorar.
O Centrão, por sua vez, opera de forma mais dissimulada, porém tão nociva quanto a extrema direita, entretanto, mais sofisticada em suas manobras. Lideranças como Ciro Nogueira (PP-PI) e Arthur Lira (PP-AL) exploram qualquer brecha para capturar parcelas expressivas do orçamento público por meio de emendas que, segundo investigações do Supremo Tribunal Federal, tiveram recursos desviados. Além disso, os políticos do Centrão avançam sobre temas que não lhes competem para extrair vantagens políticas, como ocorreu no recente embate entre o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), e o Executivo a respeito da indicação do próximo ministro do STF, uma prerrogativa que a Constituição reserva exclusivamente ao presidente da República.
Cabe ressaltar que essas investidas ousadas do Centrão não são movimentos isolados, pois parte de uma engrenagem maior voltada à autopreservação de seu poder. As emendas parlamentares funcionam como combustível dessa máquina, alimentando currais eleitorais e perpetuando um ciclo vicioso de influência, chantagem institucional e dominação política.
Em decisão recente, o ministro Flávio Dino: “determinou que os estados, o Distrito Federal e os municípios sigam o modelo federal de transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares consolidado a partir de determinações da Corte” (Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/). Essa decisão foi proferida no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854, em que o STF considerou inconstitucional o chamado “orçamento secreto” e determinou a implementação de mecanismos que assegurem maior transparência e rastreabilidade dos recursos federais destinados por meio de emendas parlamentares.
Cumpre salientar, que os ataques reiterados do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ao Governo Federal vão muito além de sua inconformidade com a escolha de Jorge Messias para o STF, em vez do senador Rodrigo Pacheco (PSB-MG).
As recentes crises entre Congresso e o governo Lula estão enraizadas em interesses mais amplos, como a pressão de parlamentares pela liberação antecipada de emendas em plena corrida pré-eleitoral, o temor do que ainda possa emergir das investigações da Operação Compliance Zero que já aponta para o envolvimento de integrantes do Centrão e da extrema direita em esquemas financeiros fraudulentos do Banco Master, além de outros interesses marcados pelo toma lá dá cá.
Em ato contínuo, parlamentares do Centrão e da extrema direita reagiram com veemente oposição após serem surpreendidos, nesta semana, por uma decisão liminar do ministro Gilmar Mendes, proferida conjuntamente nas ADPFs 1259 e 1260, ajuizadas pelo partido Solidariedade e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Ao afirmar que somente o procurador-geral da República tem competência para encaminhar ao Senado denúncias contra ministros do Supremo Tribunal Federal, Gilmar desmonta uma das principais estratégias que a direita e a extrema direita vinham alimentando para 2026.
A decisão ocorre em meio a sucessivas ameaças e provocações de parlamentares da extrema direita, frequentemente respaldados pelo Centrão, que defendem o impeachment de ministros do STF desde os desmandos do governo do ex-presidente Bolsonaro. É importante lembrar que Bolsonaro, durante os quatro anos de seu governo, promoveu ataques sistemáticos à Corte, com especial foco no ministro Alexandre de Moraes, criando um ambiente de permanente hostilidade institucional que ainda hoje reverbera no Congresso.
Vale recordar uma declaração do ex-presidente Jair Bolsonaro, feita em uma manifestação organizada por Silas Malafaia, com apoio de seus aliados parlamentares e governadores, em que ele afirmou: “Se vocês me derem, por ocasião das eleições do ano que vem, 50% da Câmara e 50% do Senado, eu mudo o destino do Brasil”, disse Bolsonaro em um ato em São Paulo, em junho. “Se vocês me derem isso não interessa onde eu esteja, aqui ou no além, quem assumir a liderança vai mandar mais que o presidente da República.”
Segundo o ministro Gilmar Mendes, diversos dispositivos da Lei 1.079 de 1950 não foram recepcionados pela Constituição de 1988. Entre eles estão o quórum para a abertura de processo de impeachment contra ministros do STF, a legitimidade para apresentar denúncias e a tentativa de transformar divergências em decisões judiciais em supostos crimes de responsabilidade.
A resposta do presidente no plenário do Senado foi imediata. Para Davi Alcolumbre, a legislação de 1950 deve prevalecer: “Eventuais abusos no uso desse direito não podem levar a anulação desse comando legal. Muito menos, repito, muito menos, por meio de uma decisão judicial. Somente uma alteração legislativa seria capaz de rever os conceitos puramente legais, sob pena de grave ofensa constitucional a separação dos poderes”.
A reação acirrada dos parlamentares da direita e extrema direita que diuturnamente ameaçam a Corte Constitucional com o impeachment de seus ministros por inconformidade com suas decisões, principalmente quanto as mais recentes que levou para cadeia seus aliados, foi tão forte da parte Congresso, que foi anunciado no mesmo dia da decisão do Ministro Gilmar a tramitação acelerada de um projeto do senador Rodrigo Pacheco que torna mais simples a destituição de ministros do STF e da PEC que limita decisões monocráticas. Há também mais duas propostas encabeçadas pela oposição, uma da parte do Senador Cleitinho (Republicanos/MG) que visa alterar o artigo 52 da CF/88. Refere a possibilidade de qualquer cidadão ou senador apresentar pedido de impeachment sob a análise de admissibilidade pelo Senado e com aprovação do pedido por maioria simples. A outra proposição é de autoria do Senador Carlos Portinho (PL-RJ) que objetiva modificar o processo de escolha dos ministros do STF. Fica ao encargo da Conselho Nacional de Justiça a elaboração de uma lista sêxtupla, cabendo ao Presidente da República indicar uma lista tríplice e ao Senado eleger o ministro com um mandato de apenas 10 anos.
Em entrevista ao UOL News em 4/12, o renomado jurista Lenio Streck manifestou apoio à decisão do Ministro Gilmar ao afirmar: “Há uma grande virtude nessa decisão. Ela traz de volta a juridicidade para pedidos de impeachment, ao menos com o Supremo”.
O posicionamento de senadores, alinhados ideologicamente ao presidente do Senado, demonstra sem sombra de dúvida, a tentativa de subordinar o funcionamento institucional aos seus objetivos eleitorais e corporativos. Para Streck, o Supremo não pode se deixar capturar por conveniências partidárias, motivo pelo qual ele recorre a exemplos internacionais para expor o despropósito e a banalização dos pedidos de impeachment no Brasil.
Com essa movimentação percebe-se claramente o forte ânimo da parte da direita e extrema direita em limitar prerrogativas, tanto da presidência da república em indicar os ministros, aumenta o leque de possibilidades de proposição de impeachment, como reduz o tempo de permanência na Suprema Corte.
Na avaliação abalizada do Desembargador Alfredo Attié do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), em entrevista à TV 247, o ministro Gilmar Mendes proferiu uma decisão cautelar oportuna, uma vez que os artigos da Lei de 1950 não tem validade diante do que a Constituição de 1988 estabelece. Para Attié constitui “um remédio preventivo contra as intenções absolutamente antidemocráticas, antijurídicas, antipolíticas, anticonstitucionais dos partidários da extrema direita ressentidos, porque foram flagrados cometendo crimes e foram condenados, eles tentaram inventar uma espécie de caça às bruxas dentro do Senado [...] criando um clima de caos para perseguir ministros e ministras do STF, quando eles estão, tão só e simplesmente, cumprindo as suas funções [...] de proteção da Constituição exatamente desses abusos que hoje estão sendo protagonizados por uma extrema direita que não quer lei, não quer a Constituição, não quer Estado Democrático de Direito, o que eles querem é fazer o que desejam e bem entendem contra o povo, contra a Constituição e contra o Estado de Direito”.
O desembargador Attié também asseverou que a interpretação do Ministro Gilmar que ora parece mais restritiva diante da conjuntura, poderá futuramente, em uma realidade amadurecida e republicana ser revista.
Ao meu ver, os posicionamentos dos juristas Attié e Streck são procedentes, uma vez que na atual configuração do Congresso, a decisão do ministro Gilmar representa um freio para salvaguardar a segurança jurídica das decisões constitucionais da Suprema Corte, independente de pressões utilitárias e ideológicas de parlamentares inconformados com as decisões dos ministros sobre os crimes cometidos por seus aliados. O Senado não pode punir ministros do STF por crime de responsabilidade simplesmente por não concordarem com seus votos. Cumpre destacar que o Senado Federal acumula 81 pedidos de impeachment de ministros da Suprema Corte, sendo que 43 são destinadas a Alexandre de Moraes, o que justifica a decisão do ministro. Outro argumento forte nesse sentido foi expresso pelo ministro Flávio Dino em um debate no Fórum Jota Segurança Jurídica, realizado em 4/12, em que ele referiu que a farta quantidade de pedidos de impeachment “jamais aconteceu antes no Brasil e em nenhum país do planeta Terra”. Também afirmou que a decisão do ministro Gilmar estimula o Congresso a legislar sobre o tema.
Nessa perspectiva temerária, o cenário político atual evidencia que a crise entre Congresso, Supremo Tribunal Federal e Executivo não é episódica nem fruto de divergências democráticas normais, trata-se da ação deliberada de grupos que se beneficiam da desordem institucional para manter seus currais, proteger aliados envolvidos em escândalos e ampliar espaços de poder à revelia da Constituição.
A decisão de Gilmar Mendes, embora provisória, funcionou como um freio incisivo diante das investidas de parlamentares que instrumentalizam o instituto do impeachment para retaliar ministros que simplesmente cumprem seu dever constitucional. Em uma democracia madura, divergências entre Poderes devem coexistir com respeito às instituições e às regras do jogo. No entanto, enquanto o Centrão e a extrema direita persistirem em agir para capturar o Estado e subjugar os mecanismos de controle, caberá ao STF e à sociedade resistir. A preservação da República exige vigilância constante, transparência no uso de recursos públicos e uma reafirmação inequívoca de que ninguém, seja congressista, banqueiro ou ex-presidente, está acima da lei.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




