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Luis Pellegrini

Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis

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Quando a Igreja silencia quem incomoda o poder

Padre Júlio Lancellotti não foi exonerado. Foi silenciado. E esse silêncio interessa a muita gente - dentro e fora da Igreja

O padre Júlio Renato Lancellotti (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

A decisão da Arquidiocese de São Paulo, sob a orientação do cardeal Dom Odilo Scherer, de orientar o padre Júlio Lancellotti a suspender transmissões de missas e se afastar das redes sociais não é um gesto neutro nem meramente administrativo. É um ato político. Ainda que travestido de prudência pastoral, o recado é claro: quando a denúncia da miséria começa a constranger os poderosos, o incômodo precisa ser contido.

Formalmente, a Igreja dirá - como já está dizendo, e com razão técnica - que não houve punição, nem processo canônico, nem afastamento do ministério. Mas, na prática, houve sim uma tentativa de desmobilização simbólica de uma das vozes mais respeitadas na defesa da população em situação de rua no Brasil. Não se cala um padre popular por acaso. Cala-se quando ele se torna grande demais para ser ignorado e verdadeiro demais para ser controlado.

Padre Júlio tornou-se alvo preferencial da extrema direita justamente porque expõe a falência moral de um projeto político que criminaliza a pobreza, higieniza cidades e trata seres humanos como lixo urbano. Em vez de defendê-lo publicamente, a hierarquia optou pelo caminho mais confortável: reduzir sua visibilidade, esfriar o conflito, preservar relações institucionais.

É a velha escolha da Igreja diplomática contra a Igreja profética.

A mesma instituição que prega a “opção preferencial pelos pobres” parece hesitar quando essa opção deixa de ser discurso e se transforma em prática concreta, diária, visível - e politicamente inconveniente. Defender os pobres em documentos e homilias beatas é fácil. Difícil é sustentar um padre que os defende diante das câmeras, com nome, rosto e endereço.

O recolhimento imposto a padre Júlio não protege apenas a Arquidiocese de desgastes. Ele protege governos omissos, vereadores persecutórios, setores da sociedade que preferem não ver - e não ouvir - o que acontece nas calçadas das grandes cidades. O silêncio imposto ao padre funciona como anestesia coletiva: se a voz some, o problema parece menor.

A ironia é cruel. Sob o papado de Francisco, que insiste numa Igreja “em saída”, aberta, corajosa e próxima dos descartados, uma das figuras que melhor encarnam esse ideal no Brasil é convidada a sair de cena. Não por erro doutrinal, não por escândalo moral, mas por excesso de coerência.

A história da Igreja está repleta de profetas silenciados em nome da prudência. Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Oscar Romero — todos foram vistos como exagerados, inconvenientes, radicais. Hoje são celebrados como exemplos. Ontem, foram tratados como problema.

Padre Júlio continua padre. Continua servindo. Continua obediente. Mas foi empurrado para a margem do debate público no momento em que sua palavra mais desestabilizava a hipocrisia social. A Igreja perdeu a chance de dizer, alto e bom som, que a defesa da vida dos pobres não é ideologia, não é militância, não é ativismo: é Evangelho puro, na sua mais verdadeira acepção.

Ao pedir silêncio ao profeta, a Igreja não protege a fé. Protege o conforto.E conforto nunca foi virtude cristã.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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