Quando chamam tudo de algoritmo
O algoritmo verdadeiro é aquilo que preserva a verdade formal, independentemente da vontade de quem o usa
Escrevo este texto movido por um incômodo antigo, que nos últimos anos deixou de ser apenas técnico para se tornar também cultural e político. Passei mais de três décadas desenvolvendo sistemas, formando programadores, avaliando soluções, lidando diretamente com aquilo que hoje se chama, de forma inflacionada, de “algoritmo”. E confesso: raramente vi uma palavra sendo usada com tão pouca precisão.
O que me motivou, desta vez, foi a banalização de uma expressão que se tornou onipresente: “viés algorítmico”. Ela aparece em reportagens, debates públicos, audiências no Congresso, artigos acadêmicos e até em discursos de autoridades. Tudo agora é culpa “do algoritmo”. Mas algo aí não fecha do ponto de vista lógico.
A digitalização da vida cotidiana transformou programas de computador em árbitros invisíveis de decisões importantes: concessão de crédito, oferta de empregos, exibição de conteúdos, publicidade direcionada, vigilância, policiamento preditivo, análise de consumo. Isso é real, concreto e tem enorme impacto social.
Essa centralidade abriu espaço para um debate necessário sobre poder, controle, discriminação e manipulação de comportamentos. O problema surge quando esse debate abandona o rigor conceitual e passa a tratar palavras técnicas como se fossem meras figuras de linguagem. “Algoritmo” virou uma entidade quase mística: decide, julga, pune, discrimina, erra, manipula — como se tivesse vontade própria.Esse uso descuidado não é inocente. Ele obscurece responsabilidades reais e desloca o foco do problema.
Dizer que “o algoritmo tem viés” é, em sentido lógico rigoroso, um contrassenso. Viés é desvio. Algoritmo, em sentido estrito, é invariância.
Se um procedimento varia conforme interesses humanos, preferências políticas, objetivos ideológicos ou critérios arbitrários, então ele já não é mais um algoritmo no sentido próprio. Ele passa a ser outra coisa: um modelo estatístico, um classificador probabilístico, um sistema de pontuação, um filtro de decisão.O que existe, de fato, é:– viés nos dados de entrada,– viés nos critérios escolhidos,– viés na função-objetivo,– viés na interpretação do resultado.Mas não existe “viés algorítmico” no sentido técnico rigoroso.Algoritmo é um procedimento formal, finito, não ambíguo e geral que, sempre que aplicado a um mesmo tipo de problema, produz necessariamente o mesmo resultado verdadeiro.
O vício da “receita de bolo”
Existe ainda outro erro conceitual, tão frequente quanto persistente, praticado justamente por aqueles que se arvoram conhecer o assunto: a insistência em dizer que “receita de bolo é um algoritmo”. Esse exemplo é repetido à exaustão em salas de aula, palestras, manuais introdutórios e reportagens, como se fosse uma evidência óbvia. Não é.
Uma receita de bolo não é um algoritmo em sentido estrito por uma razão simples: ela não preserva invariância. Pequenas variações de tempo, temperatura, umidade, ordem de mistura ou mesmo da matéria-prima produzem resultados fisicamente diferentes. Pode sair um bolo melhor, pior, solado, queimado ou simplesmente outra iguaria qualquer. O resultado não é matematicamente único.No algoritmo verdadeiro isso é inconcebível. Se duas pessoas calculam o determinante de uma matriz por métodos distintos, o valor final tem de ser exatamente o mesmo. Se não for, alguém errou. Se duas pessoas extraem a raiz quadrada de um número por processos diferentes, o limite numérico é o mesmo. Caso contrário, não estamos diante de matemática, mas de aproximação defeituosa.
A receita de bolo é um procedimento empírico. O algoritmo é um objeto formal. Confundir os dois é confundir ofício manual com lei matemática. E esse vício conceitual contaminou o debate público ao ponto de se atribuírem aos algoritmos propriedades que pertencem apenas às decisões humanas.
Regras de negócio: onde moram as decisões humanas
É aqui que entra a distinção fundamental que costuma desaparecer no debate público: regras de negócio.Regra de negócio é a expressão formal de um interesse humano objetivo: o que se quer maximizar, o que se quer minimizar, o que se deve descartar, o que se deve preservar. O algoritmo não define fins. Ele apenas executa meios.
Uma regra de negócio pode se valer de nenhum, de um ou de vários algoritmos. E um mesmo algoritmo pode servir a interesses completamente distintos, até opostos. É justamente aí que mora a diferença entre neutralidade matemática e intencionalidade humana.
Um exemplo real: gado de corte, quatro regras, um único algoritmo
Dou um exemplo concreto de uso profissional em um sistema de ERP para avaliação de rebanho de gado de corte.O objetivo do negócio era direto: maximizar a produção de carne por unidade de tempo e por animal. A partir desse objetivo foram definidas quatro regras de negócio:
Regra 1 – Quanto maior for o ganho total de peso do animal, melhor ele é.
Regra 2 – Quanto maior for o ganho diário de peso, maior o interesse em mantê-lo na propriedade.
Regra 3 – Quanto pior o desempenho segundo as regras 1 e 2, maior a necessidade de descartá-lo.
Regra 4 – O critério de descarte seria estatístico.O algoritmo utilizado foi apenas um: o cálculo da média e do desvio padrão do ganho de peso dentro de um rebanho homogêneo. Animais cujo ganho estivesse abaixo da média menos o desvio padrão eram automaticamente classificados como candidatos ao descarte.
O modelo continha quatro regras de negócio, um único algoritmo, e nenhuma decisão era tomada pelo algoritmo. Ele apenas executava um cálculo matemático objetivo. O que determinava quem sairia, quem ficaria, quem era bom ou ruim não era o algoritmo — eram as regras de negócio.
Conclusão
Se um procedimento muda de resultado conforme interesses, conveniências ou pressões externas, ele pode ser um sistema, uma regra, um filtro, um classificador, um modelo. Mas não é um algoritmo em sentido estrito.
O algoritmo verdadeiro é aquilo que preserva a verdade formal, independentemente da vontade de quem o usa. Chamar de “viés algorítmico” aquilo que é, na realidade, viés humano disfarçado de técnica não apenas confunde — serve também para deslocar o debate do lugar onde ele realmente deveria estar: nas escolhas políticas, econômicas e morais feitas por quem programa, financia, implanta e explora esses sistemas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




