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“O fascismo está reconquistando as sociedades”, alerta Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português fala à TV 247 sobre acusações de assédio, identitarismo, esquerda, big techs e o avanço de um “fascismo insidioso” nas democracias

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

247 - O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos afirmou que vive hoje uma batalha “pela dignidade” em meio às acusações de assédio sexual, assédio moral e abuso de poder que abalaram sua trajetória acadêmica. Em longa conversa, ele revisita sua biografia, rebate as denúncias, critica o identitarismo e alerta para um “fascismo insidioso” que, segundo diz, vem conquistando as sociedades por meio do narcisismo, do ressentimento e da manipulação algorítmica das emoções.

A entrevista foi concedida à jornalista Hildegard Angel, na TV 247, em clima de confidência e confronto de ideias. Ao longo de quase duas horas, Boaventura fala de seus processos, da reação da imprensa, da solidão que diz enfrentar após décadas de atuação nas lutas sociais e do contexto político internacional que, em sua leitura, favorece o avanço de autoritarismos e o esvaziamento da democracia.

“Esta é uma luta pela minha dignidade”

Logo no início, ao ser provocado sobre as ações judiciais em curso, Boaventura faz questão de corrigir o quadro: não se vê como alvo de processos, mas como autor de ações contra quem o acusa. Segundo ele, não há denúncias formais contra si em tribunais, apenas acusações veiculadas na imprensa.

“São processos criminais porque não há processos contra mim”, afirma. Em seguida, completa que as ações foram movidas contra pessoas que, segundo ele, o acusaram “falsamente” e o difamaram com o objetivo de silenciá-lo politicamente.

Questionado por Hildegard sobre como nomearia o embate que enfrenta hoje, ele responde sem hesitar: “Esta é uma luta pela minha dignidade. A luta contra a injustiça produzida por públicos que quiseram difamar-me para me silenciar.”

O sociólogo insiste que nenhuma das mulheres que o acusam declara ter mantido relação íntima com ele ou sequer ter sido alvo de tentativa de aproximação dessa natureza. Em seu relato, as acusações se concentram em “assédio moral, extrativismo, abuso de poder”, vinculados a projetos de pesquisa, bolsas e posições dentro do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, instituição que fundou e dirigiu durante décadas.

Trajetória, Coimbra e o vínculo com o Brasil

Ao longo da entrevista, Boaventura repassa sua trajetória acadêmica: nascido em Coimbra, fundador do Centro de Estudos Sociais na Universidade da cidade, filiação à Universidade de Wisconsin, em Madison, nos Estados Unidos, e uma longa relação com o Brasil, onde iniciou pesquisas ainda nos anos 1970.

Ele recorda que começou seu trabalho de campo em 1970, “numa favela”, então chamada assim: o Jacarezinho, no Rio de Janeiro, ainda sob ditadura. E ressalta a ligação com universidades brasileiras, com a UFRJ e com pesquisadoras e pesquisadores que orientou ou acolheu em Coimbra.

As acusações, o dossiê e a disputa de narrativas

Hildegard relata ter recebido um dossiê que reúne relatos de ex-alunas e colaboradoras sobre episódios interpretados como assédio sexual, comportamento inadequado e abuso de poder. Ela observa que muitas dessas mulheres tiveram, em diferentes momentos, suporte acadêmico de Boaventura, seja por meio de bolsas, oportunidades de pesquisa ou outros encaminhamentos profissionais.

O sociólogo, por sua vez, considera que a leitura feita a partir desse material não corresponde aos fatos e estaria inserida em um contexto político mais amplo. Ele afirma ter solicitado ao Ministério Público português que conduzisse uma apuração oficial, ressaltando que, segundo sua perspectiva, as acusações não se transformaram em processos formais na Justiça: “Eu só fui acusado nos jornais.”

Boaventura conta que uma das mulheres teria alegado ter perdido uma bolsa de estudos por causa dele. Ele diz ter solicitado informações à Capes, no Brasil, com base na Lei de Acesso à Informação, e afirma que os dados obtidos desmentiriam essa versão, indicando continuidade no recebimento da bolsa. Para ele, o episódio ilustra que “as mulheres também mentem muitas vezes”, frase que atribui a uma “grande feminista” portuguesa.

Ele insiste que o caso simboliza um desvio de foco em relação à violência real contra as mulheres, lembrando que em Portugal “matam 30 mulheres por ano, os seus companheiros”. Em sua leitura, o debate sobre assédio universitário, quando conduzido sem rigor, pode obscurecer a realidade brutal do feminicídio e da violência doméstica.

Feminismo, identitarismo e a esquerda em crise

Boa parte da entrevista é dedicada à crítica ao que Boaventura chama de “feminismo importado dos Estados Unidos”, associado ao movimento MeToo, que, segundo ele, teria se deslocado de pautas estruturais para uma lógica identitária fragmentada.

Ele avalia que se tornou “um alvo fácil” por ser um intelectual público de esquerda, sem partido, sem Igreja, com posição polêmica e reconhecido internacionalmente. Diz que parte da imprensa, alinhada à direita, encontrou no debate identitário uma oportunidade de destruição simbólica de figuras críticas.

Boaventura relata ameaças de morte recebidas após suas posições sobre a guerra na Ucrânia. Criticando o prolongamento do conflito, afirma que foi atacado como “homem de Putin”, apesar de considerar Vladimir Putin um líder de direita e próximo da extrema direita.

Ao analisar o cenário político, o sociólogo argumenta que a esquerda “está a suicidar-se” ao fragmentar as lutas em identidades concorrentes, enquanto a extrema direita se fortalece: “Eu acho que hoje a extrema direita tem muito poder no mundo, não é tanto o seu mérito quanto o demérito da esquerda que a deixou prosperar, dividindo-se, atacando os seus melhores [...] em nome de uma agenda limitada que não viu the big picture.”

Para ele, o identitarismo deslocado da crítica ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado favorece a desarticulação dos projetos emancipatórios.

Ressentimento, narcisismo e o “fascismo insidioso”

É nesse ponto que Boaventura formula uma das teses centrais da entrevista: a de que vivemos um retrocesso civilizacional marcado pelo ressentimento, pelo narcisismo e pela erosão do conhecimento crítico.

Ele descreve um mundo em que “o sentimento agora é mais importante que o conhecimento” e onde as fake news prosperam justamente porque oferecem conforto emotivo, ainda que desprezem a realidade. Em sua leitura, as redes sociais e a inteligência artificial substituem o pensamento próprio: “Eu acho que hoje há muita gente que não pensa e por isso existe. Não penso logo existo, porque realmente as redes sociais pensam por eles e por elas.”

O sociólogo afirma que estamos a passar de democracias para “autoritarismo eleitoral”, mencionando países como Índia, Hungria, Turquia, Israel e os próprios Estados Unidos como exemplos de sistemas em que há eleições, mas se vive num ambiente político profundamente autoritário.

É neste contexto que fala em “fascismo insidioso”, que se infiltra nas mentalidades a partir da cultura do narcisismo e da competição ressentida. O alvo não é mais o poder econômico estruturado, mas o “bode expiatório”: imigrantes, minorias, adversários políticos.

Segundo ele, esse fascismo contemporâneo se alimenta da incapacidade de ver as causas profundas da desigualdade, canalizando a revolta contra as vítimas em vez de contra os responsáveis pelo sistema de “super ricos” e a baixa tributação sobre grandes fortunas.

Inveja, destruição de reputações e solidão política

Boaventura recorre a Espinosa para explicar a lógica da inveja, que, a seu ver, também estaria presente na campanha contra si. Ele resume: “A inveja é uma maneira de que eu só me expando na medida em que contraio o outro e faço o outro pequeno, que isto é, destruo ou diminuo a existência do outro.”

Na sua leitura, parte das reações no meio acadêmico teria se alimentado de invejas antigas e de ressentimentos acumulados em torno de sua visibilidade e do reconhecimento internacional de sua obra. Ao mesmo tempo, ele reconhece que lideranças carismáticas tendem a “desertificar” o entorno, criando dificuldades de sucessão e espaços de competição interna.

O sociólogo relata ter vivido uma intensa solidão após a explosão das denúncias, apesar do apoio da mulher, com quem está casado há 60 anos. Ele menciona ainda duas pessoas negras próximas a si — a pesquisadora moçambicana Maria Paula Menezes e um pesquisador cabo-verdiano — que, segundo conta, também teriam sido atingidas pela difamação por estarem associadas ao seu trabalho no CES.

Big techs, algoritmos e o novo colonialismo

Em outro trecho central, Boaventura afirma que as grandes plataformas digitais são hoje os principais agentes do “colonialismo do nosso tempo”. Para ele, a lógica das big techs repete a “acumulação primitiva” descrita por Marx, agora não mais sobre terras e minerais, mas sobre dados e tempo de vida.

Ele lembra que as empresas de tecnologia falam em “escavar dados” (digging data) e considera essa expressão reveladora: “Nós estamos a ser vítimas disso todos os dias de uma maneira em que nós entregamos gratuitamente os nossos dados e depois temos que pagar nos programas que vêm nos nossos celulares, que vêm na inteligência artificial, etc.”

É nesse quadro que classifica o processo como “o roubo do milénio”, em comparação com escavações de lítio, cobre e outros recursos. O algoritmo, produzido a partir de dados que as pessoas entregam gratuitamente, torna-se uma ferramenta proprietária que concentra poder e riqueza nas big techs, sem transparência nem responsabilização.

Ele contrasta o debate sobre direitos da natureza — tema de sua “utopia realista” — com a ideia de conceder direitos humano-jurídicos a algoritmos, alertando para o risco de naturalizar a mercantilização da própria vida digital.

Estados Unidos, violência e decadência social

Boaventura também fala longamente sobre seus 35 anos de convivência com a sociedade norte-americana, onde lecionou parte do ano em Madison. Ele descreve um país cada vez mais desigual, marcado por pessoas vivendo nas ruas e em carros, pela dificuldade de arcar com hipotecas após a bolha imobiliária e por uma violência armada que atinge crianças em escolas, igrejas e supermercados.

Ele lembra o impacto que sofreu ao saber de uma criança brasileira assassinada a tiro num campus universitário em 1973, episódio que contribuiu para sua decisão de não permanecer em definitivo nos Estados Unidos.

Na sua avaliação, a sociedade norte-americana vive uma decadência que combina desigualdade econômica, ignorância sobre o mundo e um nacionalismo obsessivo, ao mesmo tempo em que o país segue condicionando instituições internacionais, como a ONU.

Gaza, Israel e a vergonha da comunidade internacional

Questionado por Hildegard sobre a guerra em Gaza, Boaventura responde de forma categórica: “É um genocídio, é uma situação colonial.” Ele considera Israel, hoje, um “estado pária” apoiado pelos Estados Unidos e afirma sentir-se envergonhado com a atuação do secretário-geral da ONU, António Guterres, que, em sua visão, não teria exercido a liderança necessária para enfrentar o massacre.

Ele critica o sionismo na forma hoje hegemonizada pela direita israelense e pela figura de Benjamin Netanyahu, a quem chama de “grande criminoso”. Ao mesmo tempo, distingue sionismo de judaísmo e enfatiza sua admiração pela contribuição histórica de pensadores e artistas judeus.

Boaventura afirma que gostaria que o crime do Holocausto tivesse sido reparado na Europa, com um estado destinado aos judeus em território europeu, em vez da criação de uma estrutura colonial sobre o povo palestino. E lamenta que um “sionismo de esquerda”, ligado aos kibutzim e a projetos socialistas, tenha sido engolido por uma deriva nacionalista, militarizada e racista.

Lula, esquerda brasileira e os desafios da governabilidade

A conversa avança para a política brasileira. Boaventura afirma ter “muita honra” em ser amigo de Lula e recorda a visita que fez ao então preso em Curitiba, destacando que o ex-metalúrgico, em vez de se lamentar, quis saber “como é que estava a situação na América Latina”.

Para ele, “o Lula é hoje um dos governantes mais respeitados do mundo”, mas enfrenta um Congresso “completamente hostil”, o que torna muito difícil implementar sua agenda, “por mais moderada que seja”. Boaventura vê na COP 30 um terreno de ambivalência, em que interesses do petróleo e da mineração continuam a moldar decisões ambientais globais.

Ele traça um contraste entre Lula e o presidente colombiano Gustavo Petro, lembrando que Petro anunciou que “na Amazónia colombiana todo o petróleo que está não será explorado” — gesto que ele gostaria de ver repetido no Brasil e nos demais países amazônicos.

Ao analisar o campo progressista brasileiro, o sociólogo lamenta o enfraquecimento da organização de base e do debate interno na esquerda. Recorda que partidos já tiveram “células” em fábricas, universidades e comunidades, e observa que esse tipo de militância de proximidade hoje é assumido por igrejas evangélicas, enquanto a esquerda, segundo ele, “vive nas zonas melhores da cidade” e se afastou da linguagem das periferias.

Utopias, natureza e múltiplos futuros possíveis

Em meio ao turbilhão das acusações e à crítica ao cenário político global, Boaventura insiste em falar de utopias. Ele rejeita a ideia de uma grande utopia totalizante e defende um conjunto de “micro-utopias” enraizadas em contextos específicos — quilombolas, populações ribeirinhas, povos indígenas.

Sua “utopia realista” parte do princípio de que “a natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza”. Ao citar o caso de um rio sagrado maori que obteve reconhecimento jurídico como sujeito de direitos, na Nova Zelândia, o sociólogo vê uma pista concreta de transformação: a natureza como titular de direitos, em vez de simples mercadoria.

No Brasil, ele menciona o Tapajós como exemplo de rio que deveria ter direitos reconhecidos, resistindo à lógica da privatização integral da água e da destruição de ecossistemas.

Uma despedida melancólica, entre gratidão e denúncia

Ao final da entrevista, Boaventura se emociona ao falar do impacto pessoal do processo que enfrenta. “Destruíram a minha reputação, destruíram a minha saúde, destruíram o meu bem-estar”, afirma, lamentando que, aos 85 anos, tenha sido privado da velhice tranquila que imaginava após uma vida de militância política, produção teórica e dedicação à universidade.

Ele agradece a Hildegard pela oportunidade de expor suas razões, sua dor e sua visão de mundo, num momento em que, diz, enfrenta uma combinação de difamação, cancelamento e tentativa de apagamento de sua obra. Ao mesmo tempo, reafirma o compromisso com as lutas que o acompanharam por décadas — contra o capitalismo, o colonialismo, o patriarcado e, agora, contra o que descreve como “fascismo insidioso” alimentado pelo narcisismo e pelo ressentimento.

Sem propor soluções mágicas, o sociólogo termina deixando no ar a pergunta sobre como reconstruir o fio da esperança num tempo em que o conhecimento crítico é sufocado por algoritmos, campanhas de ódio e batalhas por reputação que podem encerrar, de forma abrupta, trajetórias inteiras. Assista:

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