Boaventura alerta para nova recolonização na América Latina e papel da geração Z nas ofensivas da direita
Sociólogo português vê ofensiva de Donald Trump na Venezuela e no México, denuncia recolonização do continente e critica crise da esquerda e da juventude
247 - A América Latina vive um “grau novo de perturbação” que não pode ser confundido com as velhas instabilidades de golpes, ditaduras e intervenções externas. Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, trata-se de uma etapa mais agressiva de recolonização, comandada pelos Estados Unidos sob a liderança de Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, e articulada tanto por ameaças de invasão militar quanto por operações de guerra híbrida que instrumentalizam a geração Z, as redes sociais e o medo como afeto político central.As análises foram feitas em entrevista ao podcast Papo Curvo, da TV 247, apresentado pelo psicanalista Luciano Elia. No programa, gravado enquanto Boaventura está no Brasil, no Rio de Janeiro, o sociólogo português revisita a história de intervenções estadunidenses na região, examina casos como Venezuela e México, discute a crise da esquerda, a captura da juventude e o esvaziamento de alternativas sistêmicas, em diálogo estreito com a psicanálise.
Desestabilização como projeto e não como circunstância
Logo no início da conversa, Boaventura contesta o uso banalizado do termo “desestabilização”. Para ele, a palavra só faz sentido se não esconder que nunca houve verdadeira estabilidade em sociedades latino-americanas marcadas por desigualdade extrema, injustiça cultural e um padrão eurocêntrico de conhecimento, economia e propriedade.
Segundo o sociólogo, a América Latina viveu, ao longo de dois séculos, ciclos de democracia e autoritarismo, golpes e transições pactuadas, sempre atravessados pela intervenção do “Big Brother” do Norte. Ele lembra a doutrina Monroe, de 1823, a ideia de que a América Latina seria “zona de influência” exclusiva dos Estados Unidos, resume as “repúblicas bananas” da América Central e cita golpes e operações que marcaram o século XX e XXI, como Brasil em 1964, Chile, Argentina e a presença de múltiplas bases militares na Colômbia.
Mas o momento atual, afirma, é qualitativamente distinto: um “grau novo de perturbação” alimentado por forças externas, articuladas a frações internas das elites econômicas e políticas, com uso massivo de tecnologia digital e campanhas de ódio.
Venezuela sob ameaça de invasão e a mentira como arma
Boaventura identifica dois modelos principais de intervenção em curso. O primeiro é o mais clássico: a invasão direta, hoje dirigida sobretudo contra a Venezuela. Ele denuncia o caráter “far-west” de medidas como a oferta de milhões de dólares pela cabeça de Nicolás Maduro, “vivo ou morto”, algo que associa a filmes de bangue-bangue, não às relações internacionais.
Na avaliação do sociólogo, a narrativa que sustenta essa ofensiva repete o padrão de mentiras usadas para justificar outras intervenções dos Estados Unidos. Ele recorda que Washington “mentiu quando invadiu o Iraque, mentiu quando invadiu o Afeganistão, mentiu quando invadiu a Síria, mentiu quando invadiu o Iêmen, mentiu quando invadiu a Somália, mentiu quando invadiu a Líbia”, sempre em nome de causas como democracia ou armas de destruição em massa, quando o objetivo real era o saque de recursos naturais.
A mesma lógica, afirma, orienta a preparação de uma possível intervenção contra Caracas, novamente apoiada em alianças com setores internos interessados na queda do governo venezuelano e no controle de riquezas estratégicas.
O laboratório mexicano: geração Z, ódio antissemita e revolução colorida
O segundo modelo de desestabilização, mais novo e inquietante, estaria em curso no México. Boaventura fala em uma “revolução colorida de tipo novo”, deflagrada a partir de 15 de novembro, na qual a geração Z – jovens que nasceram já neste século – aparece como protagonista visível, mas comandada por redes de poder ocultas.
Ele descreve um cenário em que influenciadores digitais, bots e contas criadas em massa são mobilizados contra o governo, apesar de a presidenta Claudia Sheinbaum manter altos índices de aprovação. No centro da ofensiva, Boaventura cita o uso de um insulto antissemita grafitado nas portas do governo da Cidade do México, dirigido à origem judaica da mandatária, que se tornou viral e simboliza de onde vem a campanha de ódio.
Segundo o sociólogo, órgãos de investigação mexicanos já rastreiam redes de internet, bots e financiamentos vinculados a bilionários do país – como o magnata Carlos Slim e outros grandes empresários – contrariados por propostas como tributação específica sobre super-ricos. Esses atores, destaca, se articulam com o campo político de Donald Trump e ecoam diretamente o seu discurso.
Para Boaventura, o México é apenas o começo de uma estratégia que deve se repetir em outros países. Ele prevê que o Brasil será alvo de ofensiva semelhante nas próximas eleições, com uso coordenado de influenciadores, juventude, redes religiosas e campanhas digitais para desestabilizar o processo democrático.
Medo, esperança e a guerra pelos recursos
Ao ser provocado por Luciano Elia sobre a dimensão subjetiva dessa conjuntura, Boaventura recorre ao seu filósofo de referência, Spinoza, para definir-se como “um otimista trágico”. Ele lembra que, para o pensador, a vida humana precisa de um equilíbrio entre medo e esperança: o medo sem esperança leva ao desespero; a esperança sem medo, ao espontaneísmo cego.
O problema, alerta, é que está sendo produzido um clima sistemático de medo: insegurança, criminalidade, imigração transformada em ameaça permanente. O objetivo seria destruir a esperança e paralisar a capacidade de ação coletiva. Ao mesmo tempo, experiências positivas de políticas públicas e resistência popular seriam invisibilizadas.
Boaventura cita sua passagem recente por Niterói, no Rio de Janeiro, para mostrar o outro lado da realidade. Ele destaca políticas municipais para população em situação de rua, atenção básica em saúde e regeneração ambiental – como o parque da orla de Piratininga – que qualificou como “coisas extraordinárias que não são conhecidas”, porque “os grandes médias não falam dele, eles falam do outro lado para incutir o medo, incutir a insegurança”.
Estados Unidos “tranquilamente desesperados” e a disputa com China e Brics
Luciano Elia traz então uma leitura psicanalítica da própria potência imperial. Para o psicanalista, a agressividade de Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, e o recurso reiterado à intimidação e à invasão são sinais de desespero, não de força. Ele cita pesquisas que indicam um nível inédito de descontentamento interno e afirma que “os Estados Unidos estão desesperados, tranquilamente desesperados”, o que enfraquece a imagem de poder absoluto construída ao longo do século XX.
Boaventura concorda que há fragilidades estruturais, a começar pela hegemonia do dólar como moeda de referência internacional, cada vez mais contestada. Ele lembra o papel da ex-presidenta Dilma Rousseff à frente do banco dos Brics, incentivando contratos bilaterais entre países do bloco em moedas nacionais – como o comércio entre Brasil e China em reais e yuan – e menciona a recusa da Arábia Saudita em atender pedido de Washington para vender petróleo à China apenas em dólares.
O sociólogo também ressalta a centralidade da China na reconfiguração geopolítica, descrevendo um modelo híbrido – capitalismo ou socialismo de Estado, em disputa conceitual – que tirou dezenas de milhões de pessoas da fome, manteve forte presença estatal em setores estratégicos e alcançou superioridade na ciberguerra, o que alimenta a urgência dos Estados Unidos em tentar conter sua expansão.
Ao mesmo tempo, ele compara a decadência da atual classe política nos Estados Unidos e na Europa à fase final do Império Romano, depois de Marco Aurélio, quando “o resto vai ser lixo”, até o colapso. Nesse cenário, Boaventura afirma que preferiria ver Lula à frente da Comissão Europeia em vez da atual presidente, que descreve como alinhada a Washington.
Redes sociais, geração Z e a sobreposição do sentimento ao conhecimento
Uma das chaves dessa nova fase de recolonização, defende Boaventura, é o papel das redes sociais na produção de subjetividades. Elas teriam criado aquilo que define como “sobreposição do sentimento ao conhecimento”: não é que surjam apenas “fake news”, mas sim “factos alternativos” que passam a valer mais que qualquer evidência, porque o conhecimento foi desvalorizado.
Nessa lógica, o trauma é administrado por mecanismos de negação e ilusão; indivíduos isolados procuram desesperadamente uma “zona de conforto” emocional e encontram nas bolhas digitais uma espécie de gratificação narcísica. Boaventura brinca que, se Descartes vivesse hoje, teria de rever a fórmula “penso, logo existo”, pois há “pessoas que não pensam e que existem”.
Luciano aproxima essa crítica do campo clínico. Ele fala em uma “crise global de adolescência” produzida pelo neoliberalismo, marcada pela ausência de projeto, desejo e horizonte. Relata casos de jovens que flertam com o suicídio não por quadros clássicos de depressão ou melancolia, mas por uma percepção de que “tanto faz morrer ou viver”, porque a vida perdeu sentido. E lembra fenômenos como a disseminação de jogos letais nas redes, que capturam essa vulnerabilidade difusa.
Boaventura, por sua vez, chama atenção para a clivagem geracional interna à própria geração Z, citando o exemplo da Coreia do Sul, onde muitos jovens homens se alinham à extrema direita em reação ao fato de as mulheres passarem a ganhar mais, enquanto os jovens não acompanham esse movimento.
Pós-modernismo, identitarismo e o “suicídio” da esquerda
A segunda parte da entrevista mergulha em um debate epistemológico. Vindo de uma tradição marxista, Boaventura conta que tentou, em determinado momento, dialogar com o pensamento pós-moderno a partir de uma perspectiva que chamou de “pós-modernismo de oposição”: a ideia de que “temos problemas modernos para os quais não há soluções modernas”, o que exigiria soluções não eurocêntricas, abertas à diversidade epistêmica dos povos do Sul.
Ele critica, porém, o pós-modernismo dominante, principalmente francês, por declarar o “fim das grandes narrativas” – como o marxismo e a própria psicanálise – sem enfrentar que os problemas da igualdade, liberdade e fraternidade continuam presentes. Para o sociólogo, a modernidade produziu uma monocultura que negou conhecimentos indígenas, afro-quilombolas, asiáticos, não reconheceu formas coletivas de propriedade e naturalizou uma visão de natureza que nos colocou à beira do colapso ecológico.
Boaventura sustenta que a dominação contemporânea não é apenas capitalista, mas também colonial e patriarcal. A tarefa da esquerda seria articular essas três dimensões. Em vez disso, lamenta, as lutas identitárias – contra o racismo e o patriarcado – se autonomizaram da luta de classes, dando origem a um identitarismo que não questiona o capitalismo e, muitas vezes, transforma a “outra identidade” em inimigo principal.
Ele considera esse processo um “suicídio” da esquerda e cita casos europeus, como o declínio do Bloco de Esquerda em Portugal e do Podemos na Espanha. Um sintoma da derrota, diz, é que a própria palavra “capitalismo” se tornou tabu: “a palavra capitalismo desapareceu”, substituída por eufemismos como “economia de mercado”, inclusive nas faculdades de economia.
Luciano aproxima esse diagnóstico da psicanálise, lembrando que a teoria trabalha com processos – “identificação”, não “identidade”; “sexuação”, não “sexualidade” – e que a fixação em identidades estáveis bloqueia a possibilidade de singularidade. Para ele, o desafio é exatamente articular a diferença e a luta de classes, sem refutar Marx nem a psicanálise, mas ampliando seus problemas à luz das novas condições históricas.
“Não há pobres, há gente empobrecida”: lutas coletivas e psicanálise pública
Na reta final do programa, o diálogo converge para a necessidade de reconstruir práticas políticas e teóricas capazes de operar no plano coletivo. Ao comentar a vitória de candidaturas de esquerda em municípios dos Estados Unidos, Boaventura destaca a experiência de Zoran Mamdani em Nova York e nota que o racismo está profundamente enraizado entre os próprios pobres, o que obriga a um trabalho de base que parta dessa contradição.
É nesse contexto que formula uma de suas frases mais fortes: “Há gente empobrecida porque há gente enriquecida”, insistindo que “pobres” não são uma condição natural, mas resultado de relações de exploração.
Luciano, por sua vez, apresenta seu projeto de “psicanálise coletiva”, no qual defende que o inconsciente é uma estrutura necessariamente coletiva e que a verdadeira singularidade só se encontra no comum, não no individualismo. Ele aponta que uma psicanálise que se feche no tratamento estritamente individual tende a perder contato com as grandes determinações sociais, econômicas e políticas do sofrimento.
Boaventura concorda e amplia a crítica à própria universidade. Para ele, a hiperespecialização disciplinar impede que se veja a complexidade do mundo e bloqueia diálogos entre sociologia, psicanálise, ciência política, teologia e saberes populares. Daí a provocação: a universidade está a produzir “pessoas ensinadas para não pensar e para existir sem pensar”, enquanto algoritmos e sistemas de inteligência artificial prometem pensar por todos.
O sociólogo encerra reiterando que, apesar do cenário sombrio – que inclui, segundo ele, o genocídio em Gaza e a captura da agenda climática por petroleiras e mineradoras – não é possível desistir da luta. Fiel à sua fórmula, reafirma-se como “otimista trágico”: alguém que não nega o medo, mas se recusa a abrir mão da esperança e da ação direta, nas ruas e nos territórios, ao lado dos movimentos populares. Assista:



