Trump recua e busca o controle das Américas para depois retomar a disputa com Rússia e China
Nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA representa um recuo tático na disputa entre as grandes potências e impõe grandes desafios ao presidente Lula
A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, anunciada pelo presidente Donald Trump, oferece uma radiografia precisa do momento geopolítico. A superpotência que ainda detém os maiores instrumentos de poder global, seja no campo militar ou ideológico, reconhece algumas derrotas estratégicas e decide recuar taticamente para reorganizar suas forças. Esse recuo não significa fraqueza terminal, mas sim a tentativa de reconstruir capacidade de ação. E o ponto de partida escolhido por Washington nos afeta diretamente O foco é o chamado “Hemisfério Ocidental", ou seja, as Américas, que são tratadas como uma zona de influência natural e, em grande medida, vulnerável. Um quintal.
A derrota na guerra por procuração na Ucrânia é o primeiro elemento dessa reorientação. A expectativa de desgastar a Rússia não se concretizou. Moscou preservou seu aparato militar, ampliou sua influência em regiões estratégicas e fortaleceu alianças com o Sul Global. Já a Europa pagou um preço econômico alto e saiu politicamente debilitada.
O segundo elemento é a constatação de que os EUA perderam a disputa da globalização. A transferência da base industrial para a Ásia, guiada por um capitalismo financeiro que fragilizou a base industrial estadunidense e classe média do País, permitiu que a China se tornasse a maior potência manufatureira do planeta. A guerra comercial, apresentada por Trump como resposta, não impediu o avanço chinês – que hoje disputa liderança tecnológica, financeira e diplomática.
O terceiro elemento é a erosão da hegemonia unipolar. A ascensão da China, o ressurgimento estratégico da Rússia, a articulação de novas coalizões globais e o fortalecimento de países emergentes tornaram o mundo muito mais complexo. Os Estados Unidos ainda são a potência dominante, mas já não têm a mesma capacidade de impor consensos apenas com seu soft power.
Diante desse cenário, Trump anuncia claramente suas novas prioridades. Se não pode, por ora, dominar o tabuleiro euroasiático, ele decide consolidar sua retaguarda. É nesse contexto que surge o chamado “Corolário Trump”, que nada mais é do que a Doutrina Monroe 2.0, que busca impedir que China e Rússia ampliem sua presença econômica, tecnológica ou militar na América Latina. Ou seja: a superpotência ferida reorganiza suas linhas antes de retomar disputas maiores.
Essa mudança coloca desafios imensos para o presidente Lula, cuja visão de mundo é diametralmente oposta à lógica imperialista. Lula é, hoje, um dos líderes globais mais claramente alinhados à multipolaridade, defensor da ascensão do Sul Global e construtor ativo de agendas de integração, soberania e cooperação internacional. Seu projeto de política externa busca ampliar margens de autonomia e evitar submissão a qualquer hegemonia.
Entretanto, a realidade interna do Brasil coloca limites duros ao exercício pleno dessa visão. O país carrega Forças Armadas estruturadas sob o modelo estadunidense, desde formação, doutrina e equipamentos. Convive com uma elite econômica profundamente conectada aos circuitos financeiros de Wall Street – circuitos que condicionam decisões de investimento, expectativas de mercado e orientações de política econômica. E enfrenta uma mídia hegemônica alinhada aos interesses históricos de Washington, que frequentemente questiona qualquer gesto de afirmação soberana.
Nessas circunstâncias, Lula terá que ser, mais do que nunca, um equilibrista excepcional. De um lado, precisa sustentar seu compromisso com a multipolaridade, com a integração latino-americana e com a construção de alternativas à dependência histórica. De outro, terá que navegar pragmática e cuidadosamente dentro de um sistema interno que resiste a mudanças profundas e que, em muitos momentos, atua como extensão informal das pressões geopolíticas externas.
Trump sabe dessas limitações. Sabe também que muitos governos latino-americanos são suscetíveis a agendas que combinam neoliberalismo, entreguismo e repressão interna – o tripé que Trump diz esperar dos parceiros latino-americanos. Ao reforçar sua presença no continente, o governo norte-americano tenta impedir que a região se transforme em base de projeção de potências rivais e busca conter qualquer projeto de autonomia.
Nos dias de hoje, o mundo vive uma disputa estrutural entre hegemonia e multipolaridade, entre a manutenção de um centro único de poder e a emergência de novas forças políticas e econômicas. Trump tenta reorganizar sua posição nesse cenário. Lula, por sua vez, representa uma das vozes mais consistentes do campo multipolar.
A diferença é que Trump opera a partir da potência militar mais robusta do planeta. Lula atua a partir de um país com fragilidades internas que não podem ser ignoradas. O futuro da esquerda e de projetos soberanos nas Américas dependerá, em grande medida, da capacidade de Lula de navegar neste mar turbulento.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




