Um protesto contra a demissão sumária de Alysson Leandro Mascaro
Entre o estado de exceção permanente, o cancelamento ideológico e a criminalização do pensamento marxista na academia brasileira
Walter Benjamin, na tese oitava de seu ensaio “Sobre um conceito de história”, de 1940, escreveu o seguinte, de forma insuperável: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é, na verdade, a regra geral” (BENJAMIN, 1994, p. 226).
E o que é a tradição do oprimido? Ora, é a milenar história das civilizações divididas por classes sociais, em que uma minoria submete e aterroriza as maiorias, sequestrando suas vidas, o que remete à seguinte pergunta, em forma de perplexidade: como isso pode ser possível?! A resposta não pode ser senão esta: pelos sistemas ideológicos orquestrados pelas classes dominantes, que produzem, como efeitos deletérios e literalmente fatais, i) a falsa consciência de si, no interior das classes dominadas, a famosa alienação, no capitalismo; ii) e pela força; pelo estado de exceção imposto.
Trata-se, pois, traduzindo para o contemporâneo, de soft power e hard power; e ambos, em cada período da tradição do oprimido, se entrelaçam, como regra geral, dando continuidade ao Inferno de Dante sem fim da tradição do oprimido, razão por que, ainda em diálogo com Benjamin, “em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela” (Benjamin, 1994, p. 224), não havendo nada de pior e corruptor que “entregar-se às classes dominantes como instrumentos” (Benjamin, 1994, p. 224).
E qual é o sistema ideológico que estrutura a tradição do oprimido imposta pelos soft e hard powers do (embora em declínio) imperialismo norte-americano? Após o fim da URSS, em 1991, foi se configurando da seguinte maneira, até tomar a forma/conteúdo atual: i) o soft power que sequestrou as lutas legítimas e necessárias por igualdade de gênero e étnica, tornando-se instrumento do estado de exceção do imperialismo norte-americano, com o objetivo de, em última instância, cancelar não os homens e os brancos (estão mais empoderados que nunca e se tornam, a olhos vistos, fascistas), mas a esquerda marxista, socialista, anti-imperialista; ii) o hard power, instrumento do complexo industrial-militar estadunidense, expressando-se como o bolsonarismo no Brasil, a extrema direita pelo mundo, o Estado Islâmico no Oriente Médio, Boko Haram, na Nigéria e outros países africanos.
Os dois lados se polemizam e se odeiam e, desse modo, paradoxo da doxa, servem ao soberano que decreta o estado de exceção contra os povos de todo o mundo: os EUA! Entretanto, e por isso mesmo, são opostos que se encontram no beco sem saída da tradição do oprimido, quando conformada pelo imperialismo ianque, referenciando-se comumente no sistema ideológico dominante da atualidade: o sionismo, mimetizando-o no desejo manipulado pelo suposto divino direito à terra prometida, pela crença na garantia de imunidade e excepcionalidade. Desse modo, como Israel, sentem-se livres para realizar e multiplicar os estados de exceção, a serviço dos EUA, esse Deus, na prática, acima de tudo, acima de Deus!
Os estados de exceção do lado soft power são decretados cotidianamente em nome dos lugares de fala, sobretudo no interior da academia, mirando pesquisadores marxistas ou comprometidos com a soberania nacional-popular, sem a qual tudo o que parece sólido — igualdade étnica e de gênero —, em determinada circunstância de correlação de forças, como a atual, com o Governo Lula, desmancha-se no ar, sob a égide de um desgoverno endireitado, a serviço dos estados de exceção em estilo hard power.
A micropolítica imperialista-sionista do retorno à terra prometida às identidades puritanas, inexpugnáveis, aquém e além da história, exerce um poderoso poder de exceção de cancelamento de escritores, de poetas, de pesquisadores, com o seguinte e supostamente inquestionável decreto de estado de exceção: “fulano foi ou é machista, sicrano foi ou é racista, beltrano é homofóbico”. Atrás, entretanto, da micropolítica do cancelamento, com base no romantismo reacionário dos lugares de fala instrumentalizados pelos EUA, está a macropolítica revisionista, de modo que o que se procura cancelar, sobretudo, é a própria história e tudo o que a encarna, como os pesquisadores que se fundamentam no materialismo histórico, como a épica luta histórica pelo direito à soberania nacional-popular, como o socialismo, a emergência do mundo multipolar.
Franz Kafka, do romance O processo (1925), nunca foi tão atual, a propósito, pois estamos na era da micro e da macropolítica do desejo de suicidar-nos, como povo, como país, como coletividade, em nome de ser o “Alguém (que) havia caluniado Joseph K.” (KAFKA, 2003, p. 7); e o Joseph K. é tudo o que importa, tudo o que é coletivo: direitos sociais e econômicos, à dignidade, à soberania nacional; e o “alguém” é aquele que se concebe como imune precisamente porque assume a empatia pelo opressor, o imperialismo norte-americano, como referência de empoderamento; e nada pode ser pior que a empatia com os opressores do presente, porque é, também, por extensão, uma empatia com todos os opressores, de todas as épocas, inclusive quando assumem a forma de fascismo, de nazismo, de bolsonarismo.
O caso do pesquisador, jurista e escritor Alysson Leandro Mascaro, o Joseph K. da vez, tornou-se paradigmático, pois revela de forma flagrante que o soft power do esquerdismo woke e o hard power da extrema direita são, na verdade, irmãos siameses. O primeiro calunia e cancela; o segundo decreta o estado de exceção, demitindo o brilhante professor marxista de seu cargo legítimo, conquistado via concurso público de provas e títulos.
O fascistóide governador de São Paulo agradece, de modo kafkiano!
Passou da hora, pois, de arrancarmos a tradição do conformismo que quer apoderar-se (leia-se, empoderamento) dela. Afinal, o “alguém”, de Franz Kafka, não é um pronome indefinido por acaso e tem uma dupla face, quando instrumentalizado pelo imperialismo, a saber: qualquer uma ou um pode difamar; e o difamado pode ser também qualquer um ou uma (homem, hétero, branco, preta, preto, pardas e pardos, homoafetividades), bastando que esteja na mira do imperialismo, bastando que seja brasileira ou brasileiro, esses cancelados desde sempre, por sermos, como o subtítulo do romance Macunaíma, de Mário de Andrade (também cancelado), “sem nenhum caráter”, isto é, sem nenhuns caracteres predefinidos, porque somos misturados, encruzilhada de povos — terráqueos!
Basta!
Referências
ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem caráter (edição crítica). São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.
BENJAMIN, Walter. “Sobre um conceito de história”. In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1).
KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. Rio de Janeiro: O Globo, 2003.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



