“A esquerda brasileira se acostumou à covardia”, diz Breno Altman
Jornalista analisa a reação da esquerda brasileira à escalada dos Estados Unidos contra a Venezuela
247- Ao analisar os ataques militares dos Estados Unidos em torno da Venezuela, o jornalista Breno Altman, editor-chefe de Opera Mundi, afirmou que “a esquerda brasileira majoritariamente se acostumou à covardia” ao comentar a resposta de partidos e governos da região à ofensiva do governo Trump contra Caracas.
A avaliação foi feita durante participação no programa Bom Dia 247, em que Altman relacionou a postura atual da esquerda brasileira ao medo de confronto com Washington.
Altman partiu da possibilidade de um ataque terrestre norte-americano contra a Venezuela para discutir o comportamento do governo brasileiro e, em particular, do Partido dos Trabalhadores (PT). Ele projetou um “ataque controlado” comandado por Donald Trump e afirmou que a reação brasileira e latino-americana permanece marcada pela tentativa de evitar qualquer choque direto com os Estados Unidos.
“Ataque controlado” e soberania venezuelana
Questionado sobre a chance de uma ação militar imediata, Altman disse considerar provável uma operação pontual dos Estados Unidos em território da Venezuela. “Eu acho que a tendência principal é ele fazer um ataque controlado nos próximos dias, um ataque contra algum laboratório ou algum assentamento que ele possa acusar de narcoterrorista, provavelmente na fronteira entre a Colômbia e Venezuela ali no estado de Táchira seria o alvo mais provável”, avaliou.
Segundo ele, o padrão de exploração política interna nos EUA seria seguido: “Eu acho que ele fará um ataque desse tipo, e em seguida cacareja sobre o ataque, não é? Dizendo que foi um ataque destrutivo, que o narcoterrorismo será derrotado pelos Estados Unidos, provocando tanto a Venezuela quanto também a Colômbia. Eu acho que esta é a ação mais provável”.
Altman rejeitou as versões de que o presidente Nicolás Maduro cogitaria deixar o país em acordo com Washington. Para ele, não há elementos que sustentem a hipótese de uma fuga negociada. “Eu me surpreenderia muito, mas muitíssimo, por qualquer ato de fuga de Nicolás Maduro. Seria uma das maiores surpresas da minha vida. Se Maduro tivesse qualquer gesto de fuga, não é da sua personalidade e não é da personalidade da direção venezuelana”, afirmou.
Ele recordou que a Venezuela já enfrentou cenários de forte pressão política e que a própria Constituição estabelece instrumentos formais para a revisão de mandatos. “Daqui a 18 meses, quando se chegar na metade do mandato de Nicolás Maduro, a Constituição prevê um referendo revogatório. Se a oposição reunir de maneira atestada e confirmada, pelo menos a assinatura de 20% dos eleitores”, afirmou. Na sequência, acrescentou: “Daqui a 18 meses, a oposição terá o direito de convocar o referendo revogatório, desde que reúna 20% das assinaturas dos eleitores. Aí torna-se obrigatório esse referendo revocatório e a oposição teria que ter para derrubar Maduro mais votos do que Maduro teve ao CG, não é? Essas são as regras do jogo”.
Críticas à imprensa e disputa de narrativas
Antes de avançar na análise sobre a esquerda brasileira, Altman mirou veículos e profissionais que divulgaram informações sobre uma suposta fuga de Maduro. “Primeiro deixa fazer um comentário sobre a imprensa de direita no Brasil. É impressionante a disposição de inventar informação”, afirmou.
Ele citou nominalmente o jornalista Lourival Sant'Anna: “Lourival Santana inventou que havia um avião que um avião presidencial da Venezuela já estava por aspo da fronteira brasileira insinuando que o Maduro já tinha fugido.” Altman também mencionou o site Metrópoles, lembrado pelos apresentadores: “É um festival de mentiras ou de irresponsabilidade de jornalistas que são movidos ou de empresas jornalísticas que são movidas pelo puro ódio à Venezuela.”
Para o jornalista, esse “festival de mentiras” exige atenção redobrada do público: “Então é necessário que os leitores, os espectadores tenham muito senso crítico nesse momento para evitar comprar gato por lebre.”
“A esquerda brasileira se acostumou à covardia”
Ao ser provocado sobre a baixa reação de setores progressistas no Brasil diante da escalada contra a Venezuela, Altman condensou sua crítica em uma frase que ele próprio classificou como a resposta simples: “A esquerda brasileira majoritariamente se acostumou à covardia.”
Na sequência, desenvolveu o raciocínio que considera a “resposta complexa”. “Eu acho que domina na esquerda brasileira uma concepção de que não se pode trabalhar com a ideia de choque e ruptura, só se pode avançar de forma gradual”, afirmou. E detalhou a lógica que, em sua visão, predomina: “E toda vez que o gradualismo esbarra na possibilidade de ruptura, tem que recuar. Porque se não recuar vai perder.”
Altman sustentou que esse cálculo se tornou hegemônico em grande parte do campo progressista, em especial no partido que, segundo ele, concentra a maior fatia da esquerda no país. “Como nós estamos numa situação de embate, de confronto entre os Estados Unidos e a América Latina, cujo momento atual é o confronto dos Estados Unidos contra a Venezuela, é a concepção que predomina na esquerda brasileira, especialmente do Partido dos Trabalhadores, que responde por 90% da esquerda brasileira, a concepção é evitar o confronto a qualquer custo”, resumiu.
Governo Lula, PT e a lógica da mediação
Na entrevista ao Bom Dia 247, Altman conectou esse diagnóstico diretamente à postura do governo brasileiro na crise venezuelana. “Mas essa é a posição predominante que orienta a ação do governo, que orienta a ação do PT em relação a esse caso da Venezuela. Você não vê da parte do governo uma atitude mais audaciosa de solidariedade à Venezuela e de confirmação da liderança brasileira sobre a América do Sul”, afirmou.
Para ele, o Brasil não tem usado seu peso político para estabelecer limites claros à escalada militar norte-americana. “O Brasil é o grande líder natural da América do Sul e nós não vemos o governo brasileiro erguer a voz contra a violação da soberania da região, contra a escalada militar da qual Venezuela e também Colômbia são vítimas”, disse.
Altman considera que o Palácio do Planalto atua com discrição excessiva: “O Brasil opera em baixo perfil, em baixa frequência, sem precificar a escalada norte-americana, sem dizer que se os Estados Unidos atacarem o país da América do Sul, qual é o preço que os Estados Unidos terão que pagar por isso? preço econômico, preço político.”
Segundo ele, essa postura decorre da opção pela mediação como estratégia quase exclusiva. “O governo brasileiro opera na lógica da mediação. E nem sempre a mediação é possível. Nem sempre a mediação é realizável. E às vezes a mediação só é possível quando a confrontação adquire alguma simetria”, argumentou. Como exemplo, citou o conflito na Ucrânia: “Por quê é possível mediação da Ucrânia? Porque a Rússia mostrou força. Se a Rússia não tivesse mostrado força, a mediação era inútil, porque a OTAN vinha avançando sobre a fronteira russa.”
CELAC, América Latina e limites da reação regional
Ao responder sobre a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), Altman avaliou que a posição do bloco também é condicionada pela correlação de forças na região. “A posição da CELAC em relação aos ataques da Venezuela é contrária, se pronunciou recentemente em forma de uma forma mais suave do que do que seria o necessário, mas se pronunciou”, disse.
Ele apontou que parte dos governos representados na CELAC busca evitar atritos diretos com Washington: “Há um problema concreto, porque vários países da América do Sul, da América Latina, já que representa os estados latino-americanos, entre caribenhos são estados que estão dirigidos, governados pela direita ou estão governados eh por presidentes de esquerda, que no entanto tem uma política externa que busca evitar qualquer tipo de confronto mais aberto com os Estados Unidos, tá? Então isso limita o discurso da CELAC.”
Altman citou o presidente chileno, Gabriel Boric, como exemplo de discurso ambíguo: “Veja, basta ver como é ambígua a postura do presidente chileno Gabriel Boric. Ele é contrário, evidentemente, à escalada norte-americana região, mas é contrário assim, o Trump, por favor, tira os barcos dali, não faz essa coisa feia, ô Trump, vamos dialogar. Esse é o tipo de discurso do Gabriel Boric que não é um discurso contundente e não propõe uma agenda.”
Agenda de retaliações e violação do direito internacional
No diagnóstico de Altman, haveria espaço para construir uma resposta coordenada de países governados por forças progressistas. “Os países, os principais países da América do da América Latinasão dirigidos por governos de esquerda, com exceção da Argentina, os principais países, as principais economias da região, além da própria Venezuela, Brasil, Chile, México e Colômbia, são governados pela esquerda, não é? Então você pode propor uma agenda de retaliações, porque o que os Estados Unidos estão fazendo fere o direito internacional”, afirmou.
Ele citou como exemplo o fechamento do espaço aéreo venezuelano decretado por Washington. “Os Estados Unidos fecharam o espaço aéreo venezuelano. Isso é completamente oposto ao direito internacional. Isto é uma violação do direito internacional. Nenhum país tem o direito de fechar o espaço aéreo de uma outra nação. Mas a reação é uma reação tíbia, né? É uma reação tíbia. A reação do próprio das nações do Brics ainda é uma reação tíbia”, avaliou.
Altman reconheceu que Rússia e China prestam apoio logístico e econômico à Venezuela, mas defendeu que poderiam adotar um tom mais afirmativo e criar “uma situação incontornável” para os Estados Unidos.
História, trauma recente e “domesticação” da esquerda
Ao tratar das razões históricas da postura que chama de “covarde”, Altman recusou a ideia de que o trauma da luta armada pós-1964 seja o elemento central. Ele mencionou as grandes mobilizações posteriores a 1974 e o processo de reorganização da esquerda como evidência de que aquele período não bloqueou a ação política.
Seu foco recai sobre o ciclo aberto com o fim da União Soviética, em 1991, e o refluxo das lutas sociais no Brasil a partir dos anos 1990. Nesse contexto, explicou, emergiu uma nova concepção dentro da esquerda. “Vai surgindo na esquerda brasileira, como aconteceu em outros países, uma concepção que alguns chamam de liberal, outros chamam de social liberal, pelo qual a esquerda deve renunciar e à sua identidade anterior”, afirmou.
Altman lembrou que, antes, “ser de esquerda” significava ser anticapitalista e, em grande parte, revolucionário. Na virada pós-soviética, essa perspectiva teria sido substituída por um horizonte de reformas dentro do capitalismo e de “controle de danos”. “É quando a esquerda passa a dar prioridade a pautas como o movimento feminista, o movimento antirracista, que é são pautas de proteção aos grupos mais vulneráveis, a esquerda abdica de uma perspectiva revolucionária para uma perspectiva melhorista, ou seja, melhorar o sistema”, disse.
Esse movimento, segundo ele, abriu caminho para que o trauma posterior se instalasse. “A esquerda foi se domesticando majoritariamente, não tô falando de todo mundo, não é? E ao se domesticar, ela vai perdendo os anticorpos para esse tipo de trauma. Esse trauma só pôde vingar na esquerda porque a esquerda já estava muito domesticada”, analisou.
O ponto de inflexão, na sua leitura, está na sequência que envolve as jornadas de junho de 2013 e o golpe de 2016. “O trauma vem depois. Quando é que vem o trauma? Quando ocorre 2016, a esquerda não consegue mobilizar o país para impedir o golpe contra a presidenta Dilma”, afirmou. Em seguida, completou: “O trauma tá aqui, é recente. O trauma tá nesse período 2016, 2022.”
Venezuela como teste para a esquerda brasileira
Ao relacionar esse quadro à crise atual, Altman argumentou que a disputa em torno da Venezuela se torna um teste para a capacidade da esquerda brasileira de enfrentar a ofensiva norte-americana. Para ele, a combinação de gradualismo, medo de confronto e baixa disposição de mobilização alimenta a normalização da interferência de Washington na América Latina.
“Seja o Trump, ele acionou uma uma suas forças para garantir o crescimento da extrema direita na América Latina”, afirmou em outro momento da entrevista, ao lembrar que “a Venezuela não é um alvo isolado do presidente Donald Trump” e que o objetivo é “recuperar integralmente a influência na América Latina”.
Diante desse cenário, Altman considera inadequada a linha adotada pelo governo brasileiro. “Por isso, me parece pouco adequado o baixo perfil do Brasil no enfrentamento a Donald Trump sobre a questão venezuelana”, afirmou, ao alertar que essa postura acaba “naturalizando que Donald Trump intervenha nos negócios latino-americanos” e consolidando, segundo ele, a “covardia” que hoje marca boa parte da esquerda brasileira. Assista:



