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“A misoginia é um produto no mercado do ódio às mulheres”, diz Marcia Tiburi

Marcia Tiburi relaciona, em entrevista ao 247, feminicídio, patriarcado, mercado do ódio e crise política ao discutir a escalada da violência

“A misoginia é um produto no mercado do ódio às mulheres”, diz Marcia Tiburi (Foto: Divulgação)

247 - Em entrevista ao Casa das Manas da TV 247, a filósofa e escritora Márcia Tiburi afirmou que o feminicídio não é apenas uma sequência de casos isolados, mas parte de uma engrenagem estruturada de ódio às mulheres, alimentada por lucro, cultura patriarcal e crise política. Para ela, a violência contra mulheres hoje se organiza como um sistema em que a misoginia se transforma em produto, audiência e capital.A conversa com Dafne Ashton e Andréa Trus se deu no contexto de uma série de crimes contra mulheres que chocaram o país e tiveram repercussão internacional. Ao comentar o lançamento de seu livro Ninfa Morta, Tiburi explicou por que, em suas palavras, “somente uma sociedade doente” consegue naturalizar a necessidade de uma pesquisa inteira dedicada ao ódio às mulheres.

“Uma cidade de mulheres desaparecendo por ano”

Ao tratar do cenário global, Tiburi lembrou dados recentes apresentados pela ONU sobre assassinatos de mulheres por motivo de gênero. Segundo ela, “a própria ONU trouxe à tona uma estatística tenebrosa que é a morte, o assassinato por feminicídio de mais de oitenta mil mulheres pelo mundo afora, ou seja, uma cidade de mulheres desaparecendo por ano num processo de matança”.

No Brasil, ela ressaltou que a violência é cotidiana e sistemática, não episódica. A filósofa observou que, do ponto de vista estatístico, “no mínimo, quatro mulheres mortas por dia, que é isso que é a estatística que veio à tona em 2024 no Brasil”. Para Tiburi, essa recorrência expressa uma espécie de “sentença de morte sobre as mulheres” em sociedades organizadas pelo patriarcado.

“Hoje em dia, eu acho que nós mulheres temos que nos alegrar por estarmos vivas, porque se escancara essa sentença de morte sobre as mulheres, sobre todas as mulheres no sistema patriarcal”, afirmou, ao explicar que o tema central de Ninfa Morta é justamente a tese de que o patriarcado estrutura uma lógica de eliminação de corpos femininos.

Ginecropolítica: a programação da matança de mulheres

No livro, Tiburi formula o conceito de ginecropolítica para nomear o que vê como um programa histórico de eliminação de mulheres. Ela explicou que decidiu criar o termo para indicar que não se trata apenas da programação da morte de trabalhadores ou de pessoas negras, mas de um eixo específico voltado às mulheres:

“Eu cunho um novo termo aí, que é o termo ginecropolítica. Não existe na literatura mundial quem tenha falado sobre isso, resolvi colocar esse termo para dizer, olha, não é só a programação da matança dos trabalhadores, das pessoas pretas, a gente tem que lembrar que existe uma programação da matança das mulheres desde os primórdios da história política do mundo.”

Tiburi destacou que as estatísticas de feminicídio alcançam mulheres de todas as classes sociais, etnias e raças, ainda que as mulheres negras sejam as mais vitimadas por acumularem opressões de raça, gênero e classe. A filósofa sintetizou essa articulação ao dizer que “uma mulher pobre, preta, acumula três aspectos, então ela é mais morta, mas as mulheres são muito mortas desde sempre em todas as classes sociais e de todas as etnias e raças”.

Na sua interpretação, o patriarcado está na origem dessa engrenagem: “no começo é o patriarcado, o capitalismo deriva do patriarcado, o racismo deriva do patriarcado capitalista e assim por diante”. A ginecropolítica seria, assim, a face específica dessa ordem na qual a condição feminina se torna alvo permanente.

A continuidade entre fascismo e machismo

Tiburi relacionou o aumento da violência contra as mulheres à ascensão da extrema direita e de práticas fascistas. Ela afirmou que, em seus livros e num texto recém-enviado para publicação na França, vem desenvolvendo a tese da continuidade entre o avanço do fascismo e o avanço do machismo:

“Toda essa matança de mulheres, ela é plantada, ela é organizada junto com a ascensão fascista. [...] Nesse meu livro, uma coisa que eu falo e que eu venho falando, aliás, desde vários outros livros, mas nesse culmina, porque eu organizo de uma maneira mais focada essa tese, é a continuidade entre o avanço do fascismo e o avanço do machismo. [...] O fascismo é uma coisa de homens.”

Para Tiburi, a sociedade vive uma “barbárie” em que a violência estrutural toma forma política, institucional e discursiva. Ela lembrou que o processo de armamento da população, impulsionado pelo governo de extrema direita, alimenta o imaginário de guerra e amplia a letalidade:

“A gente tem o processo de armar a população com Bolsonaro, que é também um processo de encher a sociedade, encher a vida cotidiana de armas, de tal maneira que vai ficar mais fácil também para o crime organizado chegar nessas armas”, disse, ao citar a leitura de pesquisadoras que descrevem o Estado como agente que organiza o acesso às armas.

Segundo a filósofa, muitos homens que matam mulheres são justamente aqueles que têm acesso privilegiado a armamentos, incluindo agentes das forças de segurança. Essa combinação de misoginia, armas e impunidade reforça, na avaliação dela, a sensação de que “eles podem matar as mulheres”.

Mercado do ódio e monetização da misoginia

Um dos pontos centrais da fala de Tiburi é a transformação da violência contra mulheres em negócio. Ela descreveu o que chama de “machosfera” como um novo mercado em que influenciadores, grupos e lideranças se organizam para lucrar com o ódio:

“Eu estou denunciando muito isso, estou falando muito dessa machosfera como o novo mercado. Então é disso que a gente está falando, da compensação emocional que os homens têm em relação ao ódio e do fato de que eles também estão ganhando dinheiro com aquilo que eles gostam de fazer, que é odiar mulheres.”

A filósofa mencionou grupos como incels, red pills e outros coletivos de homens que se unem para difundir discurso de ódio e vender cursos, conteúdos e “soluções” baseadas na violência simbólica e material contra mulheres. “São todos homens unidos entre eles que não visam só odiar mulheres por esporte, eles visam também ganhar, capitalizar, ganhar dinheiro com isso, e ganham muito dinheiro”, afirmou.

Nesse contexto, ela resumiu: “A misoginia é monetizada, é mercadoria que está aí no mercado do ódio, que é o patriarcado do ódio, e a gente não pode fazer nada.” Para Tiburi, esse mercado reorganiza o comportamento de homens que não estão diretamente nas redes, mas se sentem autorizados a reproduzir a mesma violência no cotidiano: “O Zé Mané, o pobre coitado que nem está aí nas redes sociais, se sente autorizado também a matar, porque o clima, o espírito, digamos assim, o zeitgeist do momento é esse ódio às mulheres.”

Mídia, discurso e o apagamento da palavra feminicídio

Tiburi também criticou o tratamento dado pela imprensa tradicional à violência contra as mulheres. Ela observou que veículos conservadores relutam em usar os termos “feminicídio” e “feminismo”, mesmo diante de casos de grande repercussão.

“A imprensa conservadora, dona do dinheiro e dos meios de produção da notícia, começou a falar, mas a palavra feminicídio é evitada e a palavra feminismo também é evitada. São duas palavras que não entram no discurso da imprensa porque são palavras que trazem denúncia”, afirmou.

Segundo a filósofa, chamar um crime de feminicídio significa reconhecer “a denúncia de gênero, da matança de uma pessoa por ela ser do gênero mulher, no gênero feminino”. Já o feminismo, como palavra, “traz a revolução, traz a luta das mulheres contra isso”. Por isso, argumenta, há um esforço para tratar feminicídios como episódios isolados, muitas vezes associados a supostos distúrbios individuais dos agressores, e não como produto de um sistema patriarcal.

Ela criticou o enquadramento que tenta explicar tais crimes como resultado de loucura ou descontrole emocional masculino, enquanto historicamente as mulheres foram reduzidas à imagem de “loucas” e “desequilibradas”: “É muito coloquial, é da vida cotidiana que os homens tratam as mulheres como loucas e como perturbadas. E, no entanto, quando se trata deles cometerem crimes, então eles começam a usar isso de uma maneira positiva, como se eles fossem simplesmente loucos.”

Matrizes de subjetivação: cuidado e violência

Ao analisar as raízes culturais da violência de gênero, Tiburi afirmou que mulheres e homens são formados em matrizes de subjetivação diferentes. No caso das mulheres, o eixo é o cuidado: “Uma menina é ensinada a cuidar. [...] A nossa troca no universo feminino é uma troca de cuidados. Cuidados umas com as outras, cuidado com pai, mãe, marido, filho, mulher, enfim, a irmã, a amiga.”

Já para os homens, segundo ela, a matriz é a violência: “A gente vai olhar, a matriz de subjetivação dos homens é a violência. E aí o menino, ele nasce sendo educado para a violência, para a brutalidade. A própria noção de virilidade [...] é um ideal de violência.”

Tiburi destacou que essa divisão simbólica se expressa tanto na vida doméstica quanto na política, na economia e na cultura, reforçando a ideia de que os homens detêm o “monopólio da violência”. Essa estrutura, afirma, é o que sustenta a sociedade do feminicídio: uma organização em que as mulheres são constituídas como responsáveis por tudo, mas continuam sendo alvo do massacre.

Misoginia como problema legal e político

Para além da análise cultural, Tiburi defendeu mudanças jurídicas concretas. Ela argumentou que a aprovação de uma lei que criminalize a misoginia pode se tornar ferramenta importante no enfrentamento da violência:

“A gente precisa de leis, uma lei de criminalização da misoginia que está hoje parada na Câmara dos Deputados, já passou pelo Senado, que aprovou, criminalizar a misoginia, que vai nos ajudar muito”, afirmou.

A filósofa ressaltou que, hoje, diferentes grupos podem recorrer a legislações específicas – pessoas negras podem acionar a lei contra o racismo, pessoas trans podem se apoiar na tipificação da transfobia –, mas a misoginia em si ainda não tem tipificação direta: “Nós, mulheres cis, por exemplo, a gente não pode se defender nunca da misoginia. É isso que a gente está falando.”

Na mesma linha, ela propôs um endurecimento das penas para crimes contra mulheres, inclusive levantando a hipótese de uma revisão constitucional: “Acho que talvez o Brasil... Vou lançar uma tese bem polêmica aqui, tá? Acho que o Brasil vai ter que fazer que nem na Itália, de lançar uma prisão perpétua. A gente vai ter que rever a nossa Constituição. Lançar uma prisão perpétua. Quem sabe os caras param de achar que eles podem matar as mulheres.”

Um Congresso tomado por homens e a disputa pelo poder

Tiburi situou a violência contra as mulheres também no plano das instituições políticas. Ela descreveu o Congresso Nacional como um espaço majoritariamente masculino e hostil aos direitos das mulheres: “A gente tem um congresso que legisla contra as mulheres, é evidente isso”, afirmou.

Na sua visão, há parlamentares que constroem carreiras a partir da “mercadoria política do ódio”, especialmente em temas ligados à sexualidade, direitos reprodutivos e estupro. Ela citou figuras que, segundo sua análise, integram uma “bancada do estupro” e trabalham para restringir direitos de meninas e mulheres violentadas.

Por isso, a filósofa defende a renovação do parlamento com uma maioria de mulheres feministas e progressistas, capazes de representar a sociedade e inverter a lógica atual. A violência, nesse sentido, não é apenas um fenômeno privado ou doméstico, mas atravessa a forma como o poder é distribuído e exercido.

“Uma sociedade do culto do macho, que é a sociedade do feminicídio”

Ao longo da entrevista, Tiburi retomou a ideia de que vivemos em uma sociedade organizada em torno da figura do macho, da virilidade e do medo. Ela mencionou um livro em preparação, intitulado O culto do macho, no qual discute “essa sociedade do culto do macho, que é a sociedade do feminicídio”.

Segundo a filósofa, nessa lógica “as mulheres são odiadas, os homens são amados”. A masculinidade é cultuada por eles próprios e por parte das mulheres, enquanto os corpos femininos são alvo do ódio, da exploração e da eliminação física. Para ela, a superação desse sistema exige uma transformação profunda da cultura, do Estado e das instituições:

“É porque a gente vive com esse medo que a gente precisa superar o medo, mas para superar o medo a gente precisa botar as mulheres a governarem. As mulheres têm que ser o Estado e não os homens”, afirmou, ao defender que o enfrentamento do feminicídio passa pela desconstrução do patriarcado em todas as suas dimensões – da família às estruturas de poder.

Na leitura de Marcia Tiburi, a violência contra as mulheres e o feminicídio não são desvios da norma, mas o produto mais explícito de uma ordem que transforma a misoginia em regra, mercado e projeto político. Assista: 


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